Escolarização: a ordem oculta¹*
Eu suspeito que nem todos nessa
audiência sabem quem eu sou e porque fui convidado para palestrar para vocês
hoje. Além do mais, eu nunca escrevi um livro ou mesmo um artigo sobre homeschooling ou unschooling. Eu tenho sido chamado de muitas coisas: futurista,
filósofo planetário, antropólogo de Marte. Recentemente fui apresentado a um
público como crítico cultural e acho que isso provavelmente me define melhor.
Como vocês irão ver, em minha fala para vocês hoje, eu tentarei colocar o homeschooling e o unschooling em um contexto mais amplo de nossa história cultural,
assim como de nossa espécie.
Para aqueles de vocês que não
estão familiarizados com o meu trabalho, eu devo começar explicando o que eu
quero dizer com “nossa cultura”. Ao invés de sobrecarregá-los com uma
definição, eu vou lhes dar um teste que podem usar em qualquer lugar no mundo.
Se você está na parte do mundo onde a comida está trancada a sete chaves, e as
pessoas que vivem ai precisam trabalhar para obtê-la, então você está entre as
pessoas de nossa cultura. Se acontecer de você estar em uma selva no interior
do Brasil ou na Nova Guiné, no entanto, você vai achar que a comida não está
trancada a sete chaves. É simples por lá para os coletores e qualquer um que
queira um pouco pode simplesmente pegar. As pessoas que vivem nessas áreas,
frequentemente chamadas de aborígenes, pessoas da idade da pedra ou povos
tribais claramente pertencem a uma cultura radicalmente diferente da nossa.
Comecei a focar minha atenção nas
peculiaridades de nossa própria cultura no início dos anos 1960, quando eu fui
trabalhar para o que era então uma editora de materiais educativos de
vanguarda, Science Research Associates. Eu estava nos meus vinte e poucos anos
e tão completamente aculturado como qualquer senador, motorista de ônibus,
estrela de cinema ou médico. Minhas aceitações fundamentais sobre o universo e
o lugar da humanidade nele eram sólidas como rocha e completamente
convencionais.
Mas este foi um tempo estressante
para estar vivo, de certa forma ainda mais estressante que o presente. Muitas
pessoas hoje em dia entendem que a vida humana pode estar em perigo, mas este
perigo existe em algum futuro vagamente definido, vinte ou cinquenta ou cem
anos à frente. Mas naqueles dias mais frios da Guerra Fria todos viviam com a
percepção de que um holocausto nuclear poderia acontecer, literalmente, a
qualquer momento, sem aviso prévio. Isso estava realmente a um toque de botão
de distância.
A vida humana não seria totalmente
apagada em um holocausto deste tipo. De certa forma seria ainda pior do que
isso. Em questão de horas, nos seriamos jogados de volta não apenas à Idade da
Pedra, mas a um nível de desamparo quase completo. Na Idade da Pedra, apesar de
tudo, as pessoas vivam perfeitamente bem sem supermercados, shopping centers, lojas de eletrônicos e
todos os sistemas elaborados para manter esses lugares abastecidos com as
coisas que precisamos. Dentro de poucas horas nossas cidades iriam se
desintegrar em caos e anarquia, e as necessidades da vida desapareceriam das
prateleiras das lojas para nunca mais serem abastecidas. Em poucos dias a fome
seria generalizada.
Habilidades que eram tidas como
garantidas entre os povos da Idade da Pedra seriam desconhecidas para os sobreviventes
– a capacidade de diferenciar entre alimentos comestíveis e não comestíveis
crescendo em seu próprio ambiente, a capacidade de perseguir, matar, se vestir,
de preservar animais caçados e, o mais importante, a capacidade de fazer
ferramentas com os materiais disponíveis. Quantos de vocês sabem como curar uma
doença? Como fazer uma corda a partir do zero? Como fazer uma ferramenta de
pedra? Menos ainda como distinguir metal de minério bruto. Habilidades banais
do paleolítico, desenvolvidas ao longo de milhares de anos, se tornariam artes
perdidas.
Tudo isso era livremente
conhecido pelos povos que não duvidaram em nenhum momento que estávamos vivendo
da forma que os humanos foram feitos para viver desde o início dos tempos, que
não duvidaram em nenhum momento que as coisas que as crianças estavam
aprendendo na escola eram exatamente o que eles deviam estar aprendendo.
Eu fui contratado pela SRA para
trabalhar em um novo grande programa de matemática que estava sendo
desenvolvido há vários anos em Cleveland. No meu primeiro ano, publicaríamos os
programas de jardim de infância e da primeira-série. No segundo ano,
publicaríamos o programa da segunda-série, no terceiro ano, o programa da
terceira-série, e assim por diante. Trabalhando no jardim de infância e na
primeira-série, eu percebi que uma coisa realmente notável. Nestas classes, as
crianças gastavam a maior parte de seu tempo aprendendo coisas que
possivelmente ninguém crescendo em nossa cultura poderia evitar aprender. Por exemplo, eles aprendem o nome das cores
primárias. Nossa, imagine só faltar à aula no dia em que eles estão aprendendo
o azul. Você passaria o resto da vida
se perguntando qual é a cor do céu. Eles aprendem a ver a hora, a contar e a
somar e subtrair, como se alguém possivelmente pudesse falhar em aprender essas
coisas em nossa cultura. E, é claro, eles começam a aprender a ler. Vou me
arriscar e sugerir um experimento. Duas classes com trinta crianças, ensinados
de forma idêntica e com materiais de texto idênticos durante sua experiência
escolar, mas uma classe não está recebendo nenhuma instrução de leitura e a
outra está recebendo as instruções comuns. Chame isso de Conjectura de Quinn:
ambas as classes terão as mesmas habilidades de leitura no fim de doze anos. Eu
me sinto seguro em fazer essa conjectura porque ultimamente as crianças
aprendem a ler da mesma forma que elas aprendem a falar, vivendo em contato com
pessoas que leem e querendo ser capazes de fazer o que essas pessoas fazem.
Isto me ocorreu neste momento
para fazer esta pergunta: Ao invés de passar dois ou três anos ensinando às
crianças coisas que inevitavelmente aprenderiam de qualquer forma, porque não
ensinar a elas algumas coisas que elas não
iriam inevitavelmente aprender e que elas realmente gostem de aprender com essa idade? Como se guiar pelas estrelas,
por exemplo. Como fazer um esconderijo. Como distinguir alimentos comestíveis
de não comestíveis. Como construir um abrigo a partir do zero. Como fazer
ferramentas a partir do zero. Como fazer uma canoa. Como rastrear animais –
todas as esquecidas, mas ainda valiosas habilidades pelas quais nossa
civilização foi efetivamente construída.
É claro, eu não preciso vocalizar
esta ideia para ninguém para saber como isto seria recebido. Sendo totalmente
aculturados, eu mesmo poderia explicar porque isto seria totalmente inútil. O
modo como vivemos é a forma como os humanos foram feitos para viver desde o
início dos tempos, e nossos filhos vêm sendo preparados para entrar nessa vida.
Aqueles que vieram antes de nós eram selvagens, um pouco mais do que bestas. O
mundo fez bem em se livrar deles, e nós estamos fazendo bem em se livrar de
qualquer vestígio deles, incluindo suas ridiculamente lúdicas habilidades
primitivas.
Nossas crianças estão sendo
preparadas na escola para entrar corajosamente na única vida totalmente humana
que já existiu neste planeta. As habilidades que eles estão adquirindo nas
escolas irão trazer a eles não apenas sucesso, mas profunda satisfação pessoal
em todos os aspectos. Do que isso importa se eles nunca farão mais do que
trabalhar em algum entorpecente emprego industrial? Eles conseguem analisar uma
frase! Eles conseguem explicar para você a diferença entre um soneto
Petrarquiano e um soneto Shakespeareano! Eles conseguem extrair uma raiz quadrada!
Eles conseguem mostrar a você porque o quadrado dos dois lados de um triangulo
retângulo são iguais ao quadrado da hipotenusa! Eles conseguem analisar um
poema! Eles conseguem explicar a você como uma lei passa no congresso! Eles
podem muito possivelmente traçar para você as causas econômicas da Guerra
Civil. Eles já leram Melville e Shakespeare, então porque eles não deveriam
agora ler Dostoievsky e Racine, Joyce e Beckett, Faulkner e O’Neaill? Mas acima
de tudo, é claro, a educação da cidadania, preparando as crianças para serem
participantes em pleno funcionamento nesta nossa grande civilização. No dia
seguinte à cerimônia de formatura, eles estarão prontos para caminhar
confiantemente rumo a qualquer meta que estabeleçam para si mesmos.
É claro, tanto naquela época como
agora, todos sabiam que a educação para a cidadania não estava fazendo nada
disso. Então eles perceberam – como agora – que havia algo estranhamente errado com as escolas. Elas estavam
falhando – e falhando miseravelmente – no cumprimento dessas sedutoras
promessas. Ah sim, professores não estavam sendo bem remunerados, então o que
você poderia esperar? Nós aumentamos os salários dos professores – novamente e
novamente e novamente – e ainda assim as escolas falharam. Bem, o que você
esperava? As escolas eram fisicamente decrépitas, mal iluminadas e sem
inspiração. Nós construímos novas – dezenas de milhares, centenas de milhares
delas – e ainda assim as escolas falharam. Ora, o que você esperava? Os
currículos são antiquados e irrelevantes. Nós modernizamos o currículo, fizemos
das tripas coração para torná-lo relevante – e ainda assim as escolas
fracassaram. A cada semana – naquela época como agora – você pode ler sobre
alguma nova ideia brilhante que irá certamente “concertar” seja lá o que houver
de errado com as nossas escolas: a sala de aula aberta, equipe de professores,
de volta ao básico, mais dever de casa, menos dever de casa – eu não poderia
citar todas elas. Centenas dessas ideias brilhantes foram implementadas –
milhares delas foram implementadas – e ainda assim, as escolas falharam.
Dentro de nossa matriz cultural,
cada meio nos diz que a escola existe para preparar a criança para uma vida bem
sucedida e satisfatória em nossa civilização (e, portanto, está fadada ao
fracasso). Isto é indiscutível, indubitável e inquestionável. Em Ishmael, eu disse que a voz da mãe
cultura sussurra para nós de cada jornal e cada artigo de revista, cada filme,
cada sermão, cada livro, cada parente, cada professor, cada administrador
escolar, e o que ela tem a dizer sobre as escolas é que elas existem para
preparar as crianças para uma vida bem sucedida e satisfatória em nossa
civilização (e, portanto, fadada ao fracasso). Uma vez que caminhamos para fora
de nossa matriz cultural, essa voz não alcança mais nossos ouvidos e estaremos
livres para fazer alguns novos questionamentos. Você supõe que escolas não estão realmente falhando? Você supõe
que elas estão fazendo exatamente o que nós realmente
queremos que elas façam – mas que não desejamos reconhecer?
Admitindo-se que as escolas fazem
um pobre trabalho de preparação das crianças para uma vida bem sucedida e
satisfatória em nossa civilização, que coisas eles fazem excelentemente bem?
Bem, para começar, eles fazem um ótimo trabalho mantendo pessoas jovens fora do
mercado de trabalho. Em vez de se tornarem assalariados aos doze ou quatorze
anos, eles mantêm apenas como consumidores – e consomem bilhões de dólares em
mercadorias usando o dinheiro que seus pais ganham. Tente imaginar o que
aconteceria à nossa economia se da noite para o dia as escolas fechassem suas
portas. Em vez de ter cinquenta milhões de consumidores ativos por ai, nos
teríamos de repente cinquenta milhões de jovens desempregados. Seria nada menos
do que uma catástrofe econômica.
Claro que a situação era muito
diferente duzentos anos atrás, quando ainda éramos uma sociedade
predominantemente agrária. Os jovens eram ensinados e necessários para
tornarem-se trabalhadores aos dez, onze, doze anos. Para as massas, um quarto,
quinto ou sexto ano educacional era considerado perfeitamente suficiente. Mas
com as mudanças das características da nossa sociedade, menos jovens passaram a
ser requisitados para trabalhar nas fazendas e a promulgação de leis de
trabalho infantil logo tornaram impossível colocar crianças de dez, onze, doze
anos para trabalhar nas fábricas. Isso foi necessário para mantê-los fora das
ruas – e que lugar seria melhor para isso do que as escolas? Naturalmente, novo
material teve que ser inserido no currículo para preencher o tempo. Não importa
com o que. Faça com que memorizem as capitais de cada estado. Faça com que
memorizem os principais produtos de cada estado. Faça com que aprendam os passos
que uma lei percorre para ser aprovada pelo Congresso. Ninguém se pergunta ou
se preocupa se essas são coisas que as crianças querem saber ou precisam saber
– ou se algum dia vão precisar saber. Ninguém se pergunta ou jamais se
preocupa em descobrir se o material que está sendo adicionado ao currículo está
sendo absorvido. Os educadores não querem saber, e, realmente, que diferença
isso faria? Eu não me importo com isso, uma vez aprendido, eles serão imediatamente
esquecidos. Isso mata algum tempo. A lei decretou que uma oitava-série de
educação era essencial para todo cidadão, e então os desenvolvedores de
currículos forneceram o material necessário para uma oitava-série educacional.
Durante a Grande Depressão
tornou-se urgentemente importante manter as pessoas jovens fora do mercado de
trabalho o máximo possível, se tornou entendido que uma décima segunda-série
educacional era essencial para todo cidadão. Como antes, eu não me importo
muito com o que está sendo adicionado para matar o tempo, contanto que seja
marginalmente plausível. Vamos fazer com que aprendam a analisar um poema,
mesmo que eles nunca venham a ler outro em toda sua vida adulta. Vamos fazê-los
estudar história mundial, mesmo que isso tudo entre por uma orelha e saia pela
outra. Vamos fazer com que aprendam geometria euclideana, mesmo que em dois
anos eles não possam mais provar um único teorema ainda que suas vidas
dependessem disso. Todas essas coisas e muitas, muitas mais são justificadas com
base em que elas irão contribuir para o sucesso e rica satisfação que suas
crianças vão experimentar quando adultas. Exceto, é claro, que não irão. Mas
ninguém quer saber disso. Ninguém nem sonharia em testar os jovens cinco anos
depois da graduação para saber o quanto disso se realizou. Ninguém nem sonharia
em perguntar a eles quão útil isso tem sido para eles em termos realistas ou
quanto isso tem contribuído para seu sucesso e realização enquanto humanos.
Qual seria o objetivo de pedir a eles que avaliassem sua educação? O que
eles sabem sobre isso afinal? Eles são apenas graduados no ensino médio, não
educadores profissionais.
No fim da Segunda Guerra Mundial,
ninguém sabia como seria o futuro da economia. Com o desaparecimento da indústria
bélica, o país iria retroceder de volta a depressão pré-guerra? O mundo começou
a espalhar que a educação do cidadão deveria realmente incluir quatro anos de
universidade. Todos deveriam entrar na universidade. Enquanto a economia
continuava crescendo, porém, essa ordem começou a ser suavizada. Quatro anos de
universidade podem realmente ser bons para você, mas isso não é parte da
educação do cidadão, que ultimamente continua sendo de doze séries de educação.
Foi nos bons tempos depois da
guerra, quando havia constantemente mais empregos que trabalhadores para
preenchê-los, que nossas escolas começaram a ser percebidas como falidas. Com a
demanda de trabalhadores preparados, era evidente que as crianças estavam
saindo da escola sem saber muito mais do que graduados da sexta-série de um
século atrás. Eles tinham “passado por” todo o material que tinha sido
adicionado para matar o tempo – analisado poesias, diagramado sentenças,
provado teoremas, encontrado o valor do x,
passado por milhares de páginas de história e literatura, escrito muitos textos
– mas, para a maior parte, não absorveram quase nada e quão útil isso seria para eles se o tivessem?
De um ponto de vista empresarial, esses graduados foram mal preparados.
Mas, é claro, até ai o currículo
tinha alcançado o status de escritura, e já era tarde demais para reconhecer
que o programa não havia sido projetado para ser útil. A resposta dos educadores à comunidade empresarial foi: “Nós
só temos que dar às crianças mais do mesmo – mais poemas para analisar, mais
sentenças para diagramar, mais teoremas para provar, mais equações para
resolver, mais páginas de história e literatura para ler, mais temas para
escrever, e assim por diante”. Ninguém percebia que o programa tinha sido
criado para manter os jovens fora do mercado de trabalho – e que tinham feito
um excelente trabalho com isso.
Mas manter os jovens fora do
mercado de trabalho é apenas metade do que as escolas fazem soberbamente bem.
Lá pelos treze ou quatorze anos de idade, a criança em sociedades aborígenes –
sociedades tribais – já completou o que nós, em nosso ponto de vista,
chamaríamos de sua “educação”. Eles estão “formados” e tornam-se adultos.
Nestas sociedades, isto significa que seu valor de sobrevivência é de 100%.
Todos os mais velhos podem desaparecer do dia para a noite e isso não
instalaria o caos, a anarquia e a fome entre esses novos adultos. Eles seriam
capazes de seguir sem dificuldade. Nenhuma das habilidades e tecnologias
praticadas por seus pais seria perdida. Se eles quisessem poderiam viver de
forma totalmente diferente da estrutura tribal em que foram criados.
Mas a última coisa que nós
queremos que nossas crianças sejam hábeis para fazer é viver independentemente
de nossa sociedade. Nós não queremos que nossos graduados tenham um valor de
sobrevivência de 100%, porque isso seria torná-los livres para optar por sair de
nossa economia cuidadosamente construída e fazer o que eles quisessem. Nós não
queremos que eles façam o que eles quiserem, nós queremos que eles tenham
exatamente duas escolhas (assumindo que eles não são independentemente
capazes). Conseguir um emprego ou entrar para uma faculdade. Ambas as escolhas
são boas para nós, porque nós precisamos de um suprimento constante de
trabalhadores de nível básico e também precisamos de doutores, advogados,
físicos, matemáticos, psicólogos, geologistas, biologistas, professores
escolares, e etc. A educação do cidadão cumpre isso quase sem falha. Noventa e
nove por cento de nossos graduados do ensino médio faz uma dessas duas
escolhas.
Deve-se notar que nossos
graduados do ensino médio são, com certeza, trabalhadores de nível básico. Nós
precisamos deles para ter quem segure
o degrau mais baixo da escada. Que sentido teria dar a eles habilidades que
tornariam possível segurar o segundo ou terceiro degrau? Estes são os degraus
que seus irmãos e irmãs mais velhos estão tentando alcançar. E se estes recém-graduados
estivessem tentando alcançar o segundo ou terceiro degrau, quem faria o
trabalho lá de baixo? As pessoas de negócios que fazem a contratação
constantemente reclamam que os graduados do ensino médio não sabem
absolutamente nada, não têm praticamente nenhuma habilidade útil. Mas, na
verdade, como isso poderia ser diferente?
Então você pensa que nossas
escolas não estão falhando, estão apenas sendo bem sucedidas de uma forma que
nós preferimos não enxergar. Formar graduados sem habilidades, sem valor de
sobrevivência e sem escolha senão trabalhar ou morrer de fome, não são falhas do sistema, são características do sistema. Estas são
coisas que o sistema precisa fazer para manter as coisas como elas são.
A necessidade de escolarização é
reforçada por dois elementos bem enraizados da mitologia cultural. A primeira e
mais perniciosa delas é que as crianças não
irão aprender ao menos que sejam obrigadas – em escolas. Isto é parte da
mitologia da própria infância em que as crianças odeiam aprender e irão resistir a isso a qualquer custo. É claro,
qualquer um que tenha tido filhos sabe que isso é uma mentira absurda. Na
infância, as crianças são os aprendizes mais fantásticos do mundo. Se elas
crescem em uma família na qual quatro línguas são faladas, elas estarão falando
quatro línguas com cerca de três ou quatro anos de idade – sem um dia de
escolarização sequer, apenas estando ao redor dos membros de sua família,
porque querem desesperadamente ser capazes de fazer as coisas que eles fazem.
Qualquer um que já tenha tido uma criança sabe que eles são curiosos
incansáveis. Logo que são capazes de
fazer perguntas, passam a perguntar o tempo todo, constantemente levando seus
pais à loucura. Sua curiosidade se estende a qualquer coisa que possam
alcançar, por isso todos os pais logo aprendem a colocar qualquer coisa frágil,
qualquer coisa perigosa, qualquer coisa intocável no alto – e se possível
trancado com chave. Nós todos sabemos a verdade da piada sobre aquelas tampas
de garrafa à prova de crianças: apenas as crianças conseguem abri-las.
Pessoas que imaginam que crianças
são resistentes à aprendizagem tem um entendimento inexistente de como se
desenvolve a cultura humana. Cultura é nada mais nada menos do que a totalidade
do comportamento e informação aprendidos
e passados de uma geração para a outra. O desejo de comer não é transmitido
pela cultura, mas o conhecimento sobre como encontrar, coletar e processar
alimentos comestíveis é transmitido
pela cultura. Antes da invenção da escrita, qualquer coisa que não fosse
passada de uma geração para outra seria simplesmente perdida, não importando o
que fosse – uma técnica, uma música, um detalhe da história. Entre os povos
aborígenes – os que não foram destruídos – a transmissão entre gerações é
notavelmente completa, mas, é claro, não 100% completa. Sempre haverá detalhes
triviais de história pessoal que a geração mais velha irá levar para a cova.
Mas o material vital nunca será perdido.
Isto acontece porque o desejo de
aprender está conectado à criança
humana da mesma forma que o desejo de reprodução está conectado ao adulto
humano. Isto é genético. Se houvesse uma linhagem de humanos cujas crianças não fossem movidas para a aprendizagem,
ela já teria se extinguido a muito tempo, porque eles não poderiam ser portadores de cultura.
Crianças não devem ser motivadas a aprender tudo o que podem do
mundo onde habitam, já são absolutamente movidas
para aprender isso. No início da puberdade, as crianças nas sociedades
aborígenes já aprenderam infalivelmente tudo o que precisam para funcionarem
como adultos.
Pense dessa forma. Em termos
gerais, o relógio biológico humano está definido para dois alarmes. Enquanto o
primeiro alarme dispara, no início da puberdade, e o relógio soa: companheira, companheira, companheira,
companheira, companheira; O alarme que soa aprender, aprender, aprender nunca desaparece inteiramente, mas
isso se torna relativamente tênue no início da puberdade. Neste ponto, a
criança para de querer seguir em volta de seus pais na dança do
aprendizado. Em vez disso, eles passam a
querer seguir um ao outro na dança do
acasalamento.
Nós, é claro, em nossa grande
sabedoria, decretamos que o relógio biológico regulado pelos nossos genes deve
ser ignorado.
O que cativa tanto às pessoas na
ideia de escolarização é o fato de que a criança não-escolarizada aprende o que
ela quer aprender quando ela quiser aprender. Isto é
intolerável para elas, porque estão convencidas de que as crianças não querem
aprender nada – e apontam para a escola para provar isso. O que eles não
conseguem reconhecer é que a curva de aprendizagem das crianças da pré-escola
cresce como uma montanha – mas rapidamente os níveis caem quando eles entram na
escola. Lá pela terceira ou quarta série a curva se torna uma linha
completamente reta para a maioria das crianças. Aprender, da forma como é, se
tornou uma entediante e dolorosa experiência que elas adoram evitar quando
podem. Mas há outro motivo pelo qual as pessoas abominam a ideia de crianças
aprendendo o que elas querem aprender quando elas quiserem aprender. Elas querem que todos aprendam as mesmas
coisas! Alguns deles nunca irão aprender a analisar um poema! Alguns deles
nunca irão aprender a analisar uma sentença ou escrever um texto! Alguns deles
nunca irão ler Julio Cesar! Alguns
deles nunca irão aprender geometria! Alguns nunca irão dissecar um sapo! Alguns
nunca aprenderão como uma lei passa no Congresso! Bem, é claro, isso é muito
horrível de se imaginar. Não importa se 90% desses estudantes nunca irão ler
outro poema ou outra peça de Shakespeare em suas vidas. Não importa que 90%
delas nunca terão outra ocasião onde terão que analisar uma sentença ou
escrever outro texto em suas vidas. Não importa se 90% não absorve o
conhecimento funcional da geometria ou da álgebra que estudaram. Não importa se
90% nunca farão qualquer uso de qualquer conhecimento que supõem terem ganhado
ao dissecar um sapo. Não importa se 90% dos graduados não têm nem uma vaga
ideia de como uma lei passa no Congresso. Tudo o que importa é se eles passaram por isso! As pessoas que estão
horrorizadas com a ideia de crianças aprendendo o que elas querem quando elas
quiserem aprender, não aceitaram o fato psicológico mais elementar de que
pessoas (todas as pessoas de todas as idades) lembram-se das coisas que são
importantes para elas – as coisas que elas precisam aprender – e esquecem o
resto. Eu sou uma testemunha viva deste fato. Eu estudei em uma das melhores
escolas preparatórias do país e me graduei em quarto em minha classe, e duvido
muito se eu conseguiria passar hoje em mais de dois ou três das dúzias de
cursos que fiz. Eu estudei grego clássico por dois anos inteiros, e agora seria
incapaz de ler alto uma única frase.
O argumento final das pessoas que
avançam em apoio à ideia de que as crianças precisam de toda a escolarização
que damos a elas é de que há muito mais
material para ser aprendido hoje do que havia nos tempos pré-históricos ou
mesmo um século atrás. Bem, é claro que há muito mais material que pode ser aprendido, mas nós sabemos
perfeitamente bem que isso não está sendo ensinado em todas as séries. Hoje
existe toda uma vastidão de novos campos de conhecimento – coisas que ninguém
nunca tinha escutado a um século atrás: astrobiologia, bioquímica,
paleobiologia, aeronáutica, física de partículas, etnologia, citopatologia,
neurofisiologia – eu poderia citá-los por horas. Mas estas são coisas que nos
temos inserido nos currículos porque todos precisam aprendê-las? Certamente
não. Esta ideia é absurda. A ideia de que a criança precisa ser escolarizada
por um longo tempo porque há muito para
ser aprendido é absurda. Se a educação para a cidadania fosse estendida
para incluir tudo que pudesse ser
aprendido, isso não seria possível em doze séries, isso só seria possível em
doze mil séries, e ninguém seria capaz de se formar em uma única vida.
É claro que eu sei que não há
ninguém nesta audiência que precise ser convencido sobre as virtudes do home schooling ou do unschooling. Eu espero, de qualquer
forma, que eu tenha sido capaz de adicionar alguma fundamentação filosófica,
histórica, antropológica e biológica para as suas convicções de que a escola não
é nada do que julga ser.
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¹ Palestra de Daniel Quinn em uma conferência sobre homeschooling/unschooling em 2000.
* Daniel Quinn é um crítico cultural autor do romance Ismael - Um Romance Sobre a Condição Humana. (http://www.ishmael.org/)
Carlos Teixeira