Sobre este espaço

"Existem maneiras de pensar, agir e viver que possam ser mais satisfatórias, emocionantes, e principalmente dignas, do que as formas como pensamos, agimos e vivemos atualmente?"


Um de nossos tantos desejos... Se algum material que colocamos aqui, de alguma forma, estimular você a pensar ou sentir algo, pedimos de coração para que você use estas ideias. Copie, mude, concorde, discorde. A intenção deste blog é incentivar o questionamento e a intervenção das pessoas na sociedade. Pegue os textos, tire xerox, CONVERSE mais, faça por você, faça por todos nós, faça por ninguém. E se quiser, entre em contato(conosco, c/ qualquer um, com o meio, c/ a natureza...) Coletiva e humilde-mente - vive em paz, revolte-se!

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

7 MENTIRAS SOBRE A CIVILIZAÇÃO por Ran Prieur




1- Progresso.
A mentira sobre o "progresso" não é a de que ele é bom, ou inevitável, mas é o fato de que ele existe, de que sempre temos experienciado tal coisa como uma linha reta, uma única direção, ilimitado, uma mudança positiva. Devemos pensar que temos, porque "progresso" é a mentira central de nossa cultura e existem ilusões e fantasias sobre isto em todos os lugares:
Existe o sistema escolar, onde vamos das series baixas para as maiores - porém esta elevação não real, é apenas uma historia para contar, e a mudança é apenas para nos fazer melhor encaixados no sistema dominante, assim como negociamos a experiência por historias rígidas, intuição por intelecto, diversidade por uniformidade, independência por obediência, e espontaneidade pelo previsível. Então temos o sistema de trabalho assalariado, onde supostamente vamos de posições baixas para posições altas, mas poucos conseguem, e de qualquer maneira "alta" significa exatamente que o sistema dominante tem um controle firme de nossa atenção, de nossos valores, de nossas almas. Então temos a história da tecnologia, onde as mudanças são declaradas "melhores" quando seus efeitos são para aumentar nossa impetuosa força transformadora sobre o mundo enquanto também aumenta nossa distancia emocional, ou para nos fazer mais dependentes de especialistas, ou para rodear mais e mais os humanos com as coisas que os humanos tem criado, um processo que Jerry Mander identificou como “psychic inbreeding" (algo como "procriação psíquica", N do T). Um local profundo em nossa "procriação psíquica" é o mundo dos jogos de computadores, jogos que muitas vezes sem exceção são construídos sobre o mito do progresso, nos treinando para nos auto-medicar com dopaminas para visões de poder cada vez mais crescentes, e assim nos deixando desligados com uma vitória no lugar de nos mostrar como este tipo de historia realmente termina.
Na realidade, nada se torna "melhor", mas apenas mudam as suas relações, e uma mudança nas relações que negocia a consciência e a colaboração para a desconexão e dominação não é irreversível mas sim insustentável, não ilimitado e sim auto-limitado, não positivo e sim destrutivo.

2- Evolução
Não existe disputa nos registros fósseis, no qual a vida tem se transformado muitas vezes. A mentira está em projetar o mito "progresso" em tais transformações, declarar que tais mudanças seguem uma simples linha em uma única direção, e sempre para "melhor". Este é um argumento muito difundido, onde nossa insanidade coletiva empurra uma máscara de si mesma no mundo biológico para se justificar. Na realidade as mudanças biológicas não são como a mentira do "progresso" - as mudanças biológicas seguem diversas direções, com populações crescendo e diminuindo, com os organismos se tornando pequenos ou maiores, se movendo da água para terra, e da terra para a água. E nada se torna "melhor" a não ser o fato de que as espécies se adaptam melhor ao seu ambiente, e numa ausência de catástrofes a totalidade da vida se torna mais diversa e complexa. Mas de ambas as maneiras, os humanos civilizados têm feito o oposto! Não nos adaptando neste vasto mundo, mas alterando o mundo para ajusta-lo a nós mesmos, e também alterando a nós mesmos para nos encaixarmos nas nossas mesquinhas fantasias culturais. E não estamos aumentando, mas sim diminuindo a diversidade e complexidade do todo, levando as espécies à extinção e exterminando ou assimilando as sociedades humanas em uma monocultura global uniforme.
Então de qualquer maneira que você classifica a historia biológica na terra, a civilização não é uma extensão de tal história, mas sim, uma recusa, uma catástrofe.

3- Tudo é Natural
Felizmente a maioria da pessoas reconhecem que isto é uma distração pseudo filosófica simplória, mas de qualquer maneira quero derrubá-la, O argumento se apóia numa distorção semântica, uma redefinição do "natural" para incluir absolutamente tudo porque assim eu digo. A civilização é natural porque humanos são animais, o lixo tóxico é natural porque é derivado de coisas que surgem na terra, blá blá blá...
As pessoas não usam a palavra "natural" desta maneira. Talvez seja "natural" eu pegar um porrete e esmagar a sua cabeça, mas você preferiria que eu não fizesse isso, então você define palavras como "assassinato" para expressar e defender esta preferência. Da mesma maneira, as pessoas definem "natural" para expressar e defender suas preferências por árvores vivas do que por árvores de plástico, campos no lugar de estacionamentos, rios de águas potáveis no lugar de rios de dioxinas. Isto é o que "natural" realmente significa, e se você não quiser morrer de câncer e transformar a terra num deserto envenenado, temos a responsabilidade de separar linguisticamente o natural do não-natural e optar pelo natural muitas vezes durante um dia. Se você quer uma exata definição, "natural" significa simbiose com a natureza, e natureza significa a totalidade da vida simbiótica na Terra, e simbiótico significa formas de relações que são mutuamente benéficas e também benéficas para o todo, onde o benefício amplo toma prioridade. Definir "benefício" empurra os limites de nossa linguagem empobrecida, mas eu venho a dizer que "beneficio" significa gerar autonomia e diversidade de vida.  E se você não sabe o que significa vida, procure saber mais.

4- A Tecnologia é Neutra
De todas as mentiras acerca da civilização, esta é a mais traidora, a mais desafiadora para refutar, a mentira que mais enfraquece o entendimento das pessoas, uma vez que poderiam saber melhor. É uma tamanha mentira que é difícil de lidar com ela, é tão auto-referencial que é difícil estar fora disso, e estar fora disso não é uma questão de aprender um simples argumento, mas antes aprender um modo de pensar totalmente diferente e complexo. A mentira tem duas formas que são comumente indistinguíveis juntas. Uma diz que a tecnologia como um todo é neutra, onde a "tecnologia" deve ser sutilmente definida como tecnologia industrial moderna. A outra forma diz que cada tecnologia em particular é neutra. Minha estratégia é atacar a segunda e fazer a primeira parecer tola declarando que nenhuma tecnologia em particular é neutra, que cada técnica, tecnologia e ferramenta têm seu próprio direcionamento de motivos e relações.
Primeiro, eu quero expor a singularidade desta definição interna de "neutro". Uma coisa é "neutra" se você pode contar uma estória de que como tal coisa pode ser boa e outra história sobre como pode ser má. Quando usamos esta definição na vida real? Podemos dizer que um serial killer é neutro porque além de estuprar e matar uma mulher ele paga seus impostos e às vezes ele é gentil com as pessoas? Se você trabalha numa fábrica durante o dia para aprender como sabotá-la durante a noite, você é neutro para a fábrica porque você a ajuda e a danifica? Se meu país vende armas para dois outros países que estão em guerra, então eles se destruirão um ao outro e meu país enriquece, isto conta como neutro? É claro que não! Mas estes são os mesmos tipos de argumentos ridículos que as pessoas usam para declarar que a tecnologia é neutra; a televisão é neutra porque ela não apenas nos faz consumidores passivos de uma cultura uniforme sujeita a um controle central, ela pode transmitir informações úteis. Uma represa é neutra porque enquanto ela submerge ecossistemas e bloqueia o percurso dos peixes, ela também faz eletricidade. Mesmo as bombas atômicas são neutras se você pensar em alguma história absurda sobre como fazer o bem com ela. O próximo nível de decepção é dizer que é o "modo que usamos" uma tecnologia que é importante. Por exemplo, carros são neutros porque/conseqüentemente você pode usá-los para ir de um lugar ao outro, ou para atropelar intencionalmente alguém. Mas como Jacques Ellul colocou, a ultima não é um uso - é um crime. Chamar isto de uso nos ilude ao colocar nossa perspectiva num espaço artificial entre o uso normal de carros e um crime, no lugar de colocá-la onde pertence - exatamente no extremo pretensioso uso normal de um carro. Mesmo se ignorarmos a exploração dos "recursos", a deslocação ou assassinato de povos indígenas, e o lançamento de toxinas exigidas para a manufatura e abastecimento de carros, mesmo se ignorarmos as milhões das mortes por acidentes de carro e a emissão de afluentes tóxicos, e olharmos os carros como ferramentas de consumo, ainda podemos ver seus efeitos problemáticos: nos movendo rapidamente de lugar para lugar, o carro insere a distancia em nosso ambiente físico, e o espaço nessa distancia será largamente preenchido com ruas e estacionamentos para conter todos os carros. Asfaltos assassinos da Terra, expansão urbana, são praticamente inerentes à tecnologia do automóvel. Também, por razões complexas, velocidade para além de certa lentidão atualmente aumenta a permuta do tempo.

Uma vez que certa distância tenha sido inserida, você precisa de uma carro para fazer qualquer coisa. para exagerar um ponto que Ivan Illich fez, se você mora em Los Angeles você pode muito bem cortar suas pernas fora.
Livre-se dos carros, e não tentaremos caminhar 40 milhas por dia nas avenidas - arrancaremos o concreto e construiremos nossas comunidades de forma que todas as necessidades se supram no tempo de uma caminhada. Assim passa-se menos tempo viajando para ir ao trabalho, libera-se todo o tempo e energia que é direcionado aos carros, recupera-se a autonomia através da possibilidade de usarmos nossas próprias pernas. Isso também repercute na melhoria de nossos relacionamentos. Pois os carros nos fazem deslocar diante das coisas a uma velocidade tão alta, já que nos cercam, isolando-nos da realidade que nos cerca, das outras pessoas e da natureza, impossibilitando-nos de estabelecer relacionamentos profundos com pessoas distantes. Sem esses carros nos relacionamos diretamente e freqüentemente com o que estiver na nossa frente; conhecendo nossos vizinhos e a terra. Podería-se apresentar argumentos similares em relação aos computadores, televisão, eletricidade, inclusive a linguagem escrita. Mas a questão não é simplesmente rejeitar inteiras categorias de tecnologia, mas aprender a enxergar as alianças e motivações ideológicas que são inerentes à tecnologia, apesar de sua "utilidade", e praticar, incluir ou rejeitar com base nesse entendimento.

5. Não Podemos Voltar Atrás
Como a mentira anterior, esta é puramente uma doutrina religiosa - mas esta mentira é claramente refutada pelas ruínas das civilizações antigas ao redor do mundo da qual as pessoas "voltaram atrás", e por sorte ou por indivíduos excepcionais através da história que abandonaram o sistema e se direcionaram para perto da natureza. Em um sentido, de qualquer maneira, é verdade: as sociedades exploradoras não têm marcha ré e apenas podem escalar até o colapso. Para evitar pensar claramente sobre isto, podemos contar a nós mesmos a próxima mentira:


6. O Futuro Tudo-ou-Nada
 De acordo com esta historia existem apenas duas possibilidades: a civilização industrial continuada ou o fim total do mundo. A continuidade da civilização geralmente significa o uso contínuo de máquinas para transformar as relações em dominação e auto-consumo. Para os tecnófilos isto poderia significar a mineração em outros planetas ou se aprofundar numa realidade virtual; para os liberais pode ser a tomada de uma idealizada versão da classe media alta num país rico nos finais do século XX, estendido para o mundo todo, e se mantendo indefinidamente através do controle central mecânico. E supondo que nossa civilização caia (nem pense nisso!) teremos nada menos do que um horrível esquecimento absoluto no qual podemos apenas discutir em termos de o que "devemos" fazer para evitar isto. As pessoas expressam isto com insanos pronunciamentos vagos como: Se não reduzirmos as emissões de gases de efeito estufa em 50% em dez anos, será tarde demais". Tarde demais para o que? A realidade obvia é que as sugestões reformistas são politicamente impossíveis e insuficientes, que nossa civilização é um trem desgovernado que não irá diminuir a marcha até que saia dos trilhos, e que o futuro atual será aprofundado nas regiões que estamos esquecendo de considerar. A extinção de 95% das espécies incluindo os humanos não é um horror impensável, mas sim uma possibilidade específica que podemos pensar com precisão. Uma possibilidade moderada é um cenário Mad Max onde alguns humanos sobrevivem num planeta terra semi-morto. Moderado ainda seria um descentralização política e uma recuperação ecológica como a tão chamada idade media na Europa após a queda de Roma. Meu argumento é que podemos influenciar isto! Nossos sonhos e ações podem afetar que tipo de mundo nós iremos, mas não podem possivelmente manter o mundo em que estamos.

Chega um momento no incêndio em que você para de tentar salvar a casa inteira e passa a salvar o que se pode. O propósito da mentira tudo-ou-nada é bloquear esta mudança de mentalidade, para manter toda nossa atenção canalizada em seja salvando o mundo como conhecemos, ou o abandonando. Se compreendermos que mundos radicalmente diferentes são possíveis e que alguns estão vindo realmente a acontecer, se começarmos a imaginar e construir competidores vigorosos a civilização industrial, iremos danificar a "economia" e danificar especialmente os sentimentos das pessoas que têm investido seus egos na cultura dominante. Uma outra maneira que se protejam tais egos é com a seguinte mentira:

7- A civilização já ocorreu antes
Esta idéia peculiar é similar a anterior, mas a cegueira que ela impõem não é para outros sistemas não civilizados, mas para outras civilizações. A versão pró-civilização diz que esta é nossa única direção, colonizar o espaço e que quer que seja, e a versão anti-civilização diz que se nós podemos por abaixo a presente civilização, nada como isto irá acontecer novamente. Eu não sei de onde as pessoas vêm com essas idéias, ao menos que eles saibam algo que eu não sei sobre a vinda de uma transformação da new age da consciência humana. A dura lição da história é que cada civilização em particular cai enquanto a civilização em geral continua existindo.
Eu defino civilização geralmente como uma aliança entre a consciência de domínio e técnicas de exploração, criando uma sociedade que sistematicamente toma mais do que oferece. Sim, o petróleo irá acabar, mas as civilizações têm surgido e desaparecido por milhares de anos sem o petróleo, e não vejo razão para que não aconteça de novo. O modelo geral pode funcionar, se necessário, em nada mais do que nas forças dos músculos de escravos e de animais domesticados.  E quando você adiciona todo o metal e ferragens que estarão por ai, e os hábitos persistentes de nossa época, e qualquer conhecimento técnico que seja preservado, é obvio que parece que teremos civilização por ai - para participarmos ou para resistirmos - ao menos que sejamos extintos ou mudamos para algo completamente diferente.


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*Há uma versão mais atualizada e comentada desse texto no site do autor: http://www.ranprieur.com/essays/7lies.html

segunda-feira, 3 de junho de 2013

ESCOLARIZAÇÃO: A ORDEM OCULTA – DANIEL QUINN


Escolarização: a ordem oculta¹*


Eu suspeito que nem todos nessa audiência sabem quem eu sou e porque fui convidado para palestrar para vocês hoje. Além do mais, eu nunca escrevi um livro ou mesmo um artigo sobre homeschooling ou unschooling. Eu tenho sido chamado de muitas coisas: futurista, filósofo planetário, antropólogo de Marte. Recentemente fui apresentado a um público como crítico cultural e acho que isso provavelmente me define melhor. Como vocês irão ver, em minha fala para vocês hoje, eu tentarei colocar o homeschooling e o unschooling em um contexto mais amplo de nossa história cultural, assim como de nossa espécie.

Para aqueles de vocês que não estão familiarizados com o meu trabalho, eu devo começar explicando o que eu quero dizer com “nossa cultura”. Ao invés de sobrecarregá-los com uma definição, eu vou lhes dar um teste que podem usar em qualquer lugar no mundo. Se você está na parte do mundo onde a comida está trancada a sete chaves, e as pessoas que vivem ai precisam trabalhar para obtê-la, então você está entre as pessoas de nossa cultura. Se acontecer de você estar em uma selva no interior do Brasil ou na Nova Guiné, no entanto, você vai achar que a comida não está trancada a sete chaves. É simples por lá para os coletores e qualquer um que queira um pouco pode simplesmente pegar. As pessoas que vivem nessas áreas, frequentemente chamadas de aborígenes, pessoas da idade da pedra ou povos tribais claramente pertencem a uma cultura radicalmente diferente da nossa.

Comecei a focar minha atenção nas peculiaridades de nossa própria cultura no início dos anos 1960, quando eu fui trabalhar para o que era então uma editora de materiais educativos de vanguarda, Science Research Associates. Eu estava nos meus vinte e poucos anos e tão completamente aculturado como qualquer senador, motorista de ônibus, estrela de cinema ou médico. Minhas aceitações fundamentais sobre o universo e o lugar da humanidade nele eram sólidas como rocha e completamente convencionais.

Mas este foi um tempo estressante para estar vivo, de certa forma ainda mais estressante que o presente. Muitas pessoas hoje em dia entendem que a vida humana pode estar em perigo, mas este perigo existe em algum futuro vagamente definido, vinte ou cinquenta ou cem anos à frente. Mas naqueles dias mais frios da Guerra Fria todos viviam com a percepção de que um holocausto nuclear poderia acontecer, literalmente, a qualquer momento, sem aviso prévio. Isso estava realmente a um toque de botão de distância.

A vida humana não seria totalmente apagada em um holocausto deste tipo. De certa forma seria ainda pior do que isso. Em questão de horas, nos seriamos jogados de volta não apenas à Idade da Pedra, mas a um nível de desamparo quase completo. Na Idade da Pedra, apesar de tudo, as pessoas vivam perfeitamente bem sem supermercados, shopping centers, lojas de eletrônicos e todos os sistemas elaborados para manter esses lugares abastecidos com as coisas que precisamos. Dentro de poucas horas nossas cidades iriam se desintegrar em caos e anarquia, e as necessidades da vida desapareceriam das prateleiras das lojas para nunca mais serem abastecidas. Em poucos dias a fome seria generalizada.

Habilidades que eram tidas como garantidas entre os povos da Idade da Pedra seriam desconhecidas para os sobreviventes – a capacidade de diferenciar entre alimentos comestíveis e não comestíveis crescendo em seu próprio ambiente, a capacidade de perseguir, matar, se vestir, de preservar animais caçados e, o mais importante, a capacidade de fazer ferramentas com os materiais disponíveis. Quantos de vocês sabem como curar uma doença? Como fazer uma corda a partir do zero? Como fazer uma ferramenta de pedra? Menos ainda como distinguir metal de minério bruto. Habilidades banais do paleolítico, desenvolvidas ao longo de milhares de anos, se tornariam artes perdidas.

Tudo isso era livremente conhecido pelos povos que não duvidaram em nenhum momento que estávamos vivendo da forma que os humanos foram feitos para viver desde o início dos tempos, que não duvidaram em nenhum momento que as coisas que as crianças estavam aprendendo na escola eram exatamente o que eles deviam estar aprendendo.

Eu fui contratado pela SRA para trabalhar em um novo grande programa de matemática que estava sendo desenvolvido há vários anos em Cleveland. No meu primeiro ano, publicaríamos os programas de jardim de infância e da primeira-série. No segundo ano, publicaríamos o programa da segunda-série, no terceiro ano, o programa da terceira-série, e assim por diante. Trabalhando no jardim de infância e na primeira-série, eu percebi que uma coisa realmente notável. Nestas classes, as crianças gastavam a maior parte de seu tempo aprendendo coisas que possivelmente ninguém crescendo em nossa cultura poderia evitar aprender. Por exemplo, eles aprendem o nome das cores primárias. Nossa, imagine só faltar à aula no dia em que eles estão aprendendo o azul. Você passaria o resto da vida se perguntando qual é a cor do céu. Eles aprendem a ver a hora, a contar e a somar e subtrair, como se alguém possivelmente pudesse falhar em aprender essas coisas em nossa cultura. E, é claro, eles começam a aprender a ler. Vou me arriscar e sugerir um experimento. Duas classes com trinta crianças, ensinados de forma idêntica e com materiais de texto idênticos durante sua experiência escolar, mas uma classe não está recebendo nenhuma instrução de leitura e a outra está recebendo as instruções comuns. Chame isso de Conjectura de Quinn: ambas as classes terão as mesmas habilidades de leitura no fim de doze anos. Eu me sinto seguro em fazer essa conjectura porque ultimamente as crianças aprendem a ler da mesma forma que elas aprendem a falar, vivendo em contato com pessoas que leem e querendo ser capazes de fazer o que essas pessoas fazem.

Isto me ocorreu neste momento para fazer esta pergunta: Ao invés de passar dois ou três anos ensinando às crianças coisas que inevitavelmente aprenderiam de qualquer forma, porque não ensinar a elas algumas coisas que elas não iriam inevitavelmente aprender e que elas realmente gostem de aprender com essa idade? Como se guiar pelas estrelas, por exemplo. Como fazer um esconderijo. Como distinguir alimentos comestíveis de não comestíveis. Como construir um abrigo a partir do zero. Como fazer ferramentas a partir do zero. Como fazer uma canoa. Como rastrear animais – todas as esquecidas, mas ainda valiosas habilidades pelas quais nossa civilização foi efetivamente construída.

É claro, eu não preciso vocalizar esta ideia para ninguém para saber como isto seria recebido. Sendo totalmente aculturados, eu mesmo poderia explicar porque isto seria totalmente inútil. O modo como vivemos é a forma como os humanos foram feitos para viver desde o início dos tempos, e nossos filhos vêm sendo preparados para entrar nessa vida. Aqueles que vieram antes de nós eram selvagens, um pouco mais do que bestas. O mundo fez bem em se livrar deles, e nós estamos fazendo bem em se livrar de qualquer vestígio deles, incluindo suas ridiculamente lúdicas habilidades primitivas.

Nossas crianças estão sendo preparadas na escola para entrar corajosamente na única vida totalmente humana que já existiu neste planeta. As habilidades que eles estão adquirindo nas escolas irão trazer a eles não apenas sucesso, mas profunda satisfação pessoal em todos os aspectos. Do que isso importa se eles nunca farão mais do que trabalhar em algum entorpecente emprego industrial? Eles conseguem analisar uma frase! Eles conseguem explicar para você a diferença entre um soneto Petrarquiano e um soneto Shakespeareano! Eles conseguem extrair uma raiz quadrada! Eles conseguem mostrar a você porque o quadrado dos dois lados de um triangulo retângulo são iguais ao quadrado da hipotenusa! Eles conseguem analisar um poema! Eles conseguem explicar a você como uma lei passa no congresso! Eles podem muito possivelmente traçar para você as causas econômicas da Guerra Civil. Eles já leram Melville e Shakespeare, então porque eles não deveriam agora ler Dostoievsky e Racine, Joyce e Beckett, Faulkner e O’Neaill? Mas acima de tudo, é claro, a educação da cidadania, preparando as crianças para serem participantes em pleno funcionamento nesta nossa grande civilização. No dia seguinte à cerimônia de formatura, eles estarão prontos para caminhar confiantemente rumo a qualquer meta que estabeleçam para si mesmos.

É claro, tanto naquela época como agora, todos sabiam que a educação para a cidadania não estava fazendo nada disso. Então eles perceberam – como agora – que havia algo estranhamente errado com as escolas. Elas estavam falhando – e falhando miseravelmente – no cumprimento dessas sedutoras promessas. Ah sim, professores não estavam sendo bem remunerados, então o que você poderia esperar? Nós aumentamos os salários dos professores – novamente e novamente e novamente – e ainda assim as escolas falharam. Bem, o que você esperava? As escolas eram fisicamente decrépitas, mal iluminadas e sem inspiração. Nós construímos novas – dezenas de milhares, centenas de milhares delas – e ainda assim as escolas falharam. Ora, o que você esperava? Os currículos são antiquados e irrelevantes. Nós modernizamos o currículo, fizemos das tripas coração para torná-lo relevante – e ainda assim as escolas fracassaram. A cada semana – naquela época como agora – você pode ler sobre alguma nova ideia brilhante que irá certamente “concertar” seja lá o que houver de errado com as nossas escolas: a sala de aula aberta, equipe de professores, de volta ao básico, mais dever de casa, menos dever de casa – eu não poderia citar todas elas. Centenas dessas ideias brilhantes foram implementadas – milhares delas foram implementadas – e ainda assim, as escolas falharam.

Dentro de nossa matriz cultural, cada meio nos diz que a escola existe para preparar a criança para uma vida bem sucedida e satisfatória em nossa civilização (e, portanto, está fadada ao fracasso). Isto é indiscutível, indubitável e inquestionável. Em Ishmael, eu disse que a voz da mãe cultura sussurra para nós de cada jornal e cada artigo de revista, cada filme, cada sermão, cada livro, cada parente, cada professor, cada administrador escolar, e o que ela tem a dizer sobre as escolas é que elas existem para preparar as crianças para uma vida bem sucedida e satisfatória em nossa civilização (e, portanto, fadada ao fracasso). Uma vez que caminhamos para fora de nossa matriz cultural, essa voz não alcança mais nossos ouvidos e estaremos livres para fazer alguns novos questionamentos. Você supõe que escolas não estão realmente falhando? Você supõe que elas estão fazendo exatamente o que nós realmente queremos que elas façam – mas que não desejamos reconhecer?

Admitindo-se que as escolas fazem um pobre trabalho de preparação das crianças para uma vida bem sucedida e satisfatória em nossa civilização, que coisas eles fazem excelentemente bem? Bem, para começar, eles fazem um ótimo trabalho mantendo pessoas jovens fora do mercado de trabalho. Em vez de se tornarem assalariados aos doze ou quatorze anos, eles mantêm apenas como consumidores – e consomem bilhões de dólares em mercadorias usando o dinheiro que seus pais ganham. Tente imaginar o que aconteceria à nossa economia se da noite para o dia as escolas fechassem suas portas. Em vez de ter cinquenta milhões de consumidores ativos por ai, nos teríamos de repente cinquenta milhões de jovens desempregados. Seria nada menos do que uma catástrofe econômica.

Claro que a situação era muito diferente duzentos anos atrás, quando ainda éramos uma sociedade predominantemente agrária. Os jovens eram ensinados e necessários para tornarem-se trabalhadores aos dez, onze, doze anos. Para as massas, um quarto, quinto ou sexto ano educacional era considerado perfeitamente suficiente. Mas com as mudanças das características da nossa sociedade, menos jovens passaram a ser requisitados para trabalhar nas fazendas e a promulgação de leis de trabalho infantil logo tornaram impossível colocar crianças de dez, onze, doze anos para trabalhar nas fábricas. Isso foi necessário para mantê-los fora das ruas – e que lugar seria melhor para isso do que as escolas? Naturalmente, novo material teve que ser inserido no currículo para preencher o tempo. Não importa com o que. Faça com que memorizem as capitais de cada estado. Faça com que memorizem os principais produtos de cada estado. Faça com que aprendam os passos que uma lei percorre para ser aprovada pelo Congresso. Ninguém se pergunta ou se preocupa se essas são coisas que as crianças querem saber ou precisam saber – ou se algum dia vão precisar saber. Ninguém se pergunta ou jamais se preocupa em descobrir se o material que está sendo adicionado ao currículo está sendo absorvido. Os educadores não querem saber, e, realmente, que diferença isso faria? Eu não me importo com isso, uma vez aprendido, eles serão imediatamente esquecidos. Isso mata algum tempo. A lei decretou que uma oitava-série de educação era essencial para todo cidadão, e então os desenvolvedores de currículos forneceram o material necessário para uma oitava-série educacional.

Durante a Grande Depressão tornou-se urgentemente importante manter as pessoas jovens fora do mercado de trabalho o máximo possível, se tornou entendido que uma décima segunda-série educacional era essencial para todo cidadão. Como antes, eu não me importo muito com o que está sendo adicionado para matar o tempo, contanto que seja marginalmente plausível. Vamos fazer com que aprendam a analisar um poema, mesmo que eles nunca venham a ler outro em toda sua vida adulta. Vamos fazê-los estudar história mundial, mesmo que isso tudo entre por uma orelha e saia pela outra. Vamos fazer com que aprendam geometria euclideana, mesmo que em dois anos eles não possam mais provar um único teorema ainda que suas vidas dependessem disso. Todas essas coisas e muitas, muitas mais são justificadas com base em que elas irão contribuir para o sucesso e rica satisfação que suas crianças vão experimentar quando adultas. Exceto, é claro, que não irão. Mas ninguém quer saber disso. Ninguém nem sonharia em testar os jovens cinco anos depois da graduação para saber o quanto disso se realizou. Ninguém nem sonharia em perguntar a eles quão útil isso tem sido para eles em termos realistas ou quanto isso tem contribuído para seu sucesso e realização enquanto humanos. Qual seria o objetivo de pedir a eles que avaliassem sua educação? O que eles sabem sobre isso afinal? Eles são apenas graduados no ensino médio, não educadores profissionais.

No fim da Segunda Guerra Mundial, ninguém sabia como seria o futuro da economia. Com o desaparecimento da indústria bélica, o país iria retroceder de volta a depressão pré-guerra? O mundo começou a espalhar que a educação do cidadão deveria realmente incluir quatro anos de universidade. Todos deveriam entrar na universidade. Enquanto a economia continuava crescendo, porém, essa ordem começou a ser suavizada. Quatro anos de universidade podem realmente ser bons para você, mas isso não é parte da educação do cidadão, que ultimamente continua sendo de doze séries de educação.

Foi nos bons tempos depois da guerra, quando havia constantemente mais empregos que trabalhadores para preenchê-los, que nossas escolas começaram a ser percebidas como falidas. Com a demanda de trabalhadores preparados, era evidente que as crianças estavam saindo da escola sem saber muito mais do que graduados da sexta-série de um século atrás. Eles tinham “passado por” todo o material que tinha sido adicionado para matar o tempo – analisado poesias, diagramado sentenças, provado teoremas, encontrado o valor do x, passado por milhares de páginas de história e literatura, escrito muitos textos – mas, para a maior parte, não absorveram quase nada  e quão útil isso seria para eles se o tivessem? De um ponto de vista empresarial, esses graduados foram mal preparados.

Mas, é claro, até ai o currículo tinha alcançado o status de escritura, e já era tarde demais para reconhecer que o programa não havia sido projetado para ser útil. A resposta dos educadores à comunidade empresarial foi: “Nós só temos que dar às crianças mais do mesmo – mais poemas para analisar, mais sentenças para diagramar, mais teoremas para provar, mais equações para resolver, mais páginas de história e literatura para ler, mais temas para escrever, e assim por diante”. Ninguém percebia que o programa tinha sido criado para manter os jovens fora do mercado de trabalho – e que tinham feito um excelente trabalho com isso.

Mas manter os jovens fora do mercado de trabalho é apenas metade do que as escolas fazem soberbamente bem. Lá pelos treze ou quatorze anos de idade, a criança em sociedades aborígenes – sociedades tribais – já completou o que nós, em nosso ponto de vista, chamaríamos de sua “educação”. Eles estão “formados” e tornam-se adultos. Nestas sociedades, isto significa que seu valor de sobrevivência é de 100%. Todos os mais velhos podem desaparecer do dia para a noite e isso não instalaria o caos, a anarquia e a fome entre esses novos adultos. Eles seriam capazes de seguir sem dificuldade. Nenhuma das habilidades e tecnologias praticadas por seus pais seria perdida. Se eles quisessem poderiam viver de forma totalmente diferente da estrutura tribal em que foram criados.

Mas a última coisa que nós queremos que nossas crianças sejam hábeis para fazer é viver independentemente de nossa sociedade. Nós não queremos que nossos graduados tenham um valor de sobrevivência de 100%, porque isso seria torná-los livres para optar por sair de nossa economia cuidadosamente construída e fazer o que eles quisessem. Nós não queremos que eles façam o que eles quiserem, nós queremos que eles tenham exatamente duas escolhas (assumindo que eles não são independentemente capazes). Conseguir um emprego ou entrar para uma faculdade. Ambas as escolhas são boas para nós, porque nós precisamos de um suprimento constante de trabalhadores de nível básico e também precisamos de doutores, advogados, físicos, matemáticos, psicólogos, geologistas, biologistas, professores escolares, e etc. A educação do cidadão cumpre isso quase sem falha. Noventa e nove por cento de nossos graduados do ensino médio faz uma dessas duas escolhas.

Deve-se notar que nossos graduados do ensino médio são, com certeza, trabalhadores de nível básico. Nós precisamos deles para ter quem segure o degrau mais baixo da escada. Que sentido teria dar a eles habilidades que tornariam possível segurar o segundo ou terceiro degrau? Estes são os degraus que seus irmãos e irmãs mais velhos estão tentando alcançar. E se estes recém-graduados estivessem tentando alcançar o segundo ou terceiro degrau, quem faria o trabalho lá de baixo? As pessoas de negócios que fazem a contratação constantemente reclamam que os graduados do ensino médio não sabem absolutamente nada, não têm praticamente nenhuma habilidade útil. Mas, na verdade, como isso poderia ser diferente?

Então você pensa que nossas escolas não estão falhando, estão apenas sendo bem sucedidas de uma forma que nós preferimos não enxergar. Formar graduados sem habilidades, sem valor de sobrevivência e sem escolha senão trabalhar ou morrer de fome, não são falhas do sistema, são características do sistema. Estas são coisas que o sistema precisa fazer para manter as coisas como elas são.

A necessidade de escolarização é reforçada por dois elementos bem enraizados da mitologia cultural. A primeira e mais perniciosa delas é que as crianças não irão aprender ao menos que sejam obrigadas – em escolas. Isto é parte da mitologia da própria infância em que as crianças odeiam aprender e irão resistir a isso a qualquer custo. É claro, qualquer um que tenha tido filhos sabe que isso é uma mentira absurda. Na infância, as crianças são os aprendizes mais fantásticos do mundo. Se elas crescem em uma família na qual quatro línguas são faladas, elas estarão falando quatro línguas com cerca de três ou quatro anos de idade – sem um dia de escolarização sequer, apenas estando ao redor dos membros de sua família, porque querem desesperadamente ser capazes de fazer as coisas que eles fazem. Qualquer um que já tenha tido uma criança sabe que eles são curiosos incansáveis. Logo que são capazes de fazer perguntas, passam a perguntar o tempo todo, constantemente levando seus pais à loucura. Sua curiosidade se estende a qualquer coisa que possam alcançar, por isso todos os pais logo aprendem a colocar qualquer coisa frágil, qualquer coisa perigosa, qualquer coisa intocável no alto – e se possível trancado com chave. Nós todos sabemos a verdade da piada sobre aquelas tampas de garrafa à prova de crianças: apenas as crianças conseguem abri-las.

Pessoas que imaginam que crianças são resistentes à aprendizagem tem um entendimento inexistente de como se desenvolve a cultura humana. Cultura é nada mais nada menos do que a totalidade do comportamento e informação aprendidos e passados de uma geração para a outra. O desejo de comer não é transmitido pela cultura, mas o conhecimento sobre como encontrar, coletar e processar alimentos comestíveis é transmitido pela cultura. Antes da invenção da escrita, qualquer coisa que não fosse passada de uma geração para outra seria simplesmente perdida, não importando o que fosse – uma técnica, uma música, um detalhe da história. Entre os povos aborígenes – os que não foram destruídos – a transmissão entre gerações é notavelmente completa, mas, é claro, não 100% completa. Sempre haverá detalhes triviais de história pessoal que a geração mais velha irá levar para a cova. Mas o material vital nunca será perdido.
Isto acontece porque o desejo de aprender está conectado à criança humana da mesma forma que o desejo de reprodução está conectado ao adulto humano. Isto é genético. Se houvesse uma linhagem de humanos cujas crianças não fossem movidas para a aprendizagem, ela já teria se extinguido a muito tempo, porque eles não poderiam ser portadores de cultura.

Crianças não devem ser motivadas a aprender tudo o que podem do mundo onde habitam, já são absolutamente movidas para aprender isso. No início da puberdade, as crianças nas sociedades aborígenes já aprenderam infalivelmente tudo o que precisam para funcionarem como adultos.

Pense dessa forma. Em termos gerais, o relógio biológico humano está definido para dois alarmes. Enquanto o primeiro alarme dispara, no início da puberdade, e o relógio soa: companheira, companheira, companheira, companheira, companheira; O alarme que soa aprender, aprender, aprender nunca desaparece inteiramente, mas isso se torna relativamente tênue no início da puberdade. Neste ponto, a criança para de querer seguir em volta de seus pais na dança do aprendizado.  Em vez disso, eles passam a querer seguir um ao outro na dança do acasalamento.

Nós, é claro, em nossa grande sabedoria, decretamos que o relógio biológico regulado pelos nossos genes deve ser ignorado.

O que cativa tanto às pessoas na ideia de escolarização é o fato de que a criança não-escolarizada aprende o que ela quer aprender quando ela quiser aprender. Isto é intolerável para elas, porque estão convencidas de que as crianças não querem aprender nada – e apontam para a escola para provar isso. O que eles não conseguem reconhecer é que a curva de aprendizagem das crianças da pré-escola cresce como uma montanha – mas rapidamente os níveis caem quando eles entram na escola. Lá pela terceira ou quarta série a curva se torna uma linha completamente reta para a maioria das crianças. Aprender, da forma como é, se tornou uma entediante e dolorosa experiência que elas adoram evitar quando podem. Mas há outro motivo pelo qual as pessoas abominam a ideia de crianças aprendendo o que elas querem aprender quando elas quiserem aprender. Elas querem que todos aprendam as mesmas coisas! Alguns deles nunca irão aprender a analisar um poema! Alguns deles nunca irão aprender a analisar uma sentença ou escrever um texto! Alguns deles nunca irão ler Julio Cesar! Alguns deles nunca irão aprender geometria! Alguns nunca irão dissecar um sapo! Alguns nunca aprenderão como uma lei passa no Congresso! Bem, é claro, isso é muito horrível de se imaginar. Não importa se 90% desses estudantes nunca irão ler outro poema ou outra peça de Shakespeare em suas vidas. Não importa que 90% delas nunca terão outra ocasião onde terão que analisar uma sentença ou escrever outro texto em suas vidas. Não importa se 90% não absorve o conhecimento funcional da geometria ou da álgebra que estudaram. Não importa se 90% nunca farão qualquer uso de qualquer conhecimento que supõem terem ganhado ao dissecar um sapo. Não importa se 90% dos graduados não têm nem uma vaga ideia de como uma lei passa no Congresso. Tudo o que importa é se eles passaram por isso! As pessoas que estão horrorizadas com a ideia de crianças aprendendo o que elas querem quando elas quiserem aprender, não aceitaram o fato psicológico mais elementar de que pessoas (todas as pessoas de todas as idades) lembram-se das coisas que são importantes para elas – as coisas que elas precisam aprender – e esquecem o resto. Eu sou uma testemunha viva deste fato. Eu estudei em uma das melhores escolas preparatórias do país e me graduei em quarto em minha classe, e duvido muito se eu conseguiria passar hoje em mais de dois ou três das dúzias de cursos que fiz. Eu estudei grego clássico por dois anos inteiros, e agora seria incapaz de ler alto uma única frase.

O argumento final das pessoas que avançam em apoio à ideia de que as crianças precisam de toda a escolarização que damos a elas é de que há muito mais material para ser aprendido hoje do que havia nos tempos pré-históricos ou mesmo um século atrás. Bem, é claro que há muito mais material que pode ser aprendido, mas nós sabemos perfeitamente bem que isso não está sendo ensinado em todas as séries. Hoje existe toda uma vastidão de novos campos de conhecimento – coisas que ninguém nunca tinha escutado a um século atrás: astrobiologia, bioquímica, paleobiologia, aeronáutica, física de partículas, etnologia, citopatologia, neurofisiologia – eu poderia citá-los por horas. Mas estas são coisas que nos temos inserido nos currículos porque todos precisam aprendê-las? Certamente não. Esta ideia é absurda. A ideia de que a criança precisa ser escolarizada por um longo tempo porque há muito para ser aprendido é absurda. Se a educação para a cidadania fosse estendida para incluir tudo que pudesse ser aprendido, isso não seria possível em doze séries, isso só seria possível em doze mil séries, e ninguém seria capaz de se formar em uma única vida.

É claro que eu sei que não há ninguém nesta audiência que precise ser convencido sobre as virtudes do home schooling ou do unschooling. Eu espero, de qualquer forma, que eu tenha sido capaz de adicionar alguma fundamentação filosófica, histórica, antropológica e biológica para as suas convicções de que a escola não é nada do que julga ser.

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¹ Palestra de Daniel Quinn em uma conferência sobre homeschooling/unschooling em 2000. 
* Daniel Quinn é um crítico cultural autor do romance Ismael - Um Romance Sobre a Condição Humana. (http://www.ishmael.org/)


Carlos Teixeira

terça-feira, 21 de maio de 2013

O DILEMA DO HOMEM-BALA E A CATAPULTA DA CIVILIZAÇÃO


Tudo que sobe...

Se a Idade Média foi um período de estagnação do homem, um pântano sombrio e imobilizante, o Iluminismo foi uma espécie de catapulta para a humanidade: por meio desta arma de cerco, criada para lançar projeteis a distâncias enormes pelo ar sem que os obstáculos terrestres no trajeto impedissem que o alvo fosse alcançado, o homem autocatapultou-se e alçou voo pelo céu, a uma velocidade assustadora, ignorando todo e qualquer obstáculo à sua frente. Quanto mais alto subia, maior se tornava o seu campo de visão sobre o horizonte, cheio de possibilidades, e maior era sua vontade de chegar o mais longe que pudesse. Dez séculos de pouca mobilidade amarrado a mistérios sobre-humanos, faz com que qualquer um, ao desatar as amarras, se afobe e saia correndo sem pensar na velocidade e no rumo que deve seguir. Tudo parecia correr bem no início do trajeto do homem-bala. Mas, com o tempo, ele passa a olhar com maior atenção o que vê pela frente. Vê castelos destruídos, esburacados pelos projéteis lançados pouco tempo antes dele. Vê as marcas de destruição de enormes bolas de pedra que se chocam ao chão depois de sua gloriosa conquista dos céus. E, logo, lhe vêm uma lembrança à mente: “tudo que sobe, desce”. 

O iluminismo foi a catapulta do homem, a ferramenta desenvolvida para realizar o projeto moderno de dar mais dinâmica ao processo de civilização. Por meio dele, muitos obstáculos no caminho da expansão da civilização foram retirados. O Deísmo conseguiu subjugar o inquestionável Deus medieval à espada da Razão, colocando-o de lado para que deixasse de ser um entrave moral. Desmoronou a crença cristã da imperfeição humana erigida pela Igreja e elaborou outra crença, tão religiosa quanto qualquer crença medieval: a crença na possibilidade da perfectibilidade humana. Realizou a necessária distinção entre o plano material e o espiritual – enaltecendo um e desvalorizando o outro – imprescindível aos anseios pela livre ação humana sobre a realidade. Não mais era compromisso do homem compreender uma verdade revelada e adaptar-se a ela da melhor forma possível, esse compromisso foi substituído pelo compromisso de entender racionalmente o funcionamento do mundo, de forma que pudéssemos manuseá-lo como bem entendêssemos no sentido de aperfeiçoá-lo à nossas vontades e necessidades. O sentido da vida humana passa a ser buscar a perfeição humana e o aperfeiçoamento do mundo. A esta ideologia, deram o nefasto nome de progresso.

A tecnologia gera problemas que tentamos resolver com mais tecnologia.

A ideologia do progresso gerou frutos: a ciência, o individualismo e o capitalismo.

Aos poucos matou o Deus cristão e erigiu em seu lugar um panteão de deuses produzidos industrialmente e vendidos em supermercados. Esses novos deuses são mais fáceis de cultuar, não querem nada de nós além de toda uma vida de sacrifícios – produzir para consumir para produzir para consumir para produzir para consumir... 

A sociedade apostou todas as suas fichas na ciência e agora os cientistas são os modeladores da Revelação – “eles sabem o que estão fazendo”, tentamos nos convencer. Acreditamos que a tecnologia resolve tudo e resolverá ainda mais no futuro. O mito da tecnologia como redenção da humanidade é difundido como pílulas para dormir e ignoramos na prática que toda tecnologia tem um custo e que os problemas aos quais tentamos resolver com tecnologia foram gerados exatamente por essa lógica de que só precisamos de tecnologia mais avançada para superar nossas dificuldades.

As pessoas buscaram a perfeição, e não a encontraram, e na falta do perdão, incomodamente e excessivamente cristão para os novos tempos, encontraram o consolo em remédios que engendram doenças. A neurose da busca pela impecabilidade nos tornou incapazes de lidar com os erros e de entender que não somos nem podemos ser perfeitos. Tornamo-nos assim escravos da culpa que nos chicoteia a cada erro que cometemos. Logo, só nos restam duas opções: sermos assombrados constantemente pela lembrança de nossos erros passados, mas continuar buscando a ética da perfeição frustradamente durante toda uma vida e exigindo-a de todos os outros ao nosso redor; ou nos resta despirmo-nos de valores morais e de ética, viver pela satisfação da vontade e pela busca do prazer e conforto. Essa constante cobrança pessoal extravaza-se ao outro, e assim, perdemos a capacidade de compreender e perdoar as limitações desse outro. Desaprendemos a amar, a nos relacionar intimamente e a perceber o caráter pedagógico do erro. Estamos tentando desenvolver nossa individualidade à força, passando por cima dos obstáculos ao invés de compreendê-los e nos adaptarmos a eles, porque temos pressa, queremos ser perfeitos AGORA!

A natureza e o futuro do planeta está em nossas mãos, e é exatamente esse o problema.

 
Pois é, o homem-bala, catapultado das pequenas cidadezinhas em ascensão no século XIV – XV, começa a perceber que seu trajeto não é uma reta rumo ao infinito, mas sim, uma parábola rumo ao chão sólido. Não me parece arriscado dizer que os mais sensatos dentre nós já podem perceber que estamos atingindo o pico de ascensão em nossa aventura suicída. Daqui, pouco mais podemos subir. E o declínio será catastrófico para o projeto de progresso ilimitado e busca pela perfeição. Aliás, pouco disso realmente conseguimos alcançar. Ninguém nunca foi perfeito e nunca será, temos nos tornado, na verdade, cada vez mais incapazes de estabelecer relações sociais sadias, seja com os outros, seja com nosso próprio ego. O mundo não está se tornando mais perfeito, está se tornando num inferno onde se torna a cada dia mais difícil viver em paz sem ser atingido pelas consequências de nossa civilização. Não conseguimos nos tornar independente da natureza, por mais que pensemos que estamos exercendo um relativo grande domínio sobre as leis naturais, estamos apenas levando aos limites a nossa boa relação com ela. Seremos cobrados por nossa audácia e cada dia que passa o preço se torna mais alto. Estamos sim progredindo – estamos em movimento retilíneo e cada vez mais acelerado em direção a uma parede, e nada indica que temos intenção de parar e dar meia volta antes da colisão.


 
Realmente, as coisas não deviam estar indo bem nos feudos medievais. Alguma coisa precisava ser feita. Mas, como sempre fez desde a escolha insana e pouco lógica de trocar uma vida nômade de pouco trabalho e abundância de alimentos por uma vida de trabalho árduo cultivando a terra na transição do modo de vida caçador-coletor para o modo de vida agrícola, o homem optou pelo mais promissor – pela maior quantidade de conforto, prazer e bem-estar possível – e, como antes, conseguiu. Ergueu uma civilização nunca antes vista na história do planeta e, por consequência, construiu a possibilidade de gerar o maior colapso civilizacional já visto. Isso porque, em todos esses dez mil anos de civilização, não conseguiu aprender que mais conforto, prazer e bem-estar, pelo menos na forma de que estamos habituados a entender esses conceitos, não tem nada a ver com vida melhor.



Carlos Teixeira.