Tudo que sobe... |
Se a Idade Média foi um período de
estagnação do homem, um pântano sombrio e imobilizante, o Iluminismo foi uma
espécie de catapulta para a humanidade: por meio desta arma de cerco, criada
para lançar projeteis a distâncias enormes pelo ar sem que os obstáculos
terrestres no trajeto impedissem que o alvo fosse alcançado, o homem autocatapultou-se
e alçou voo pelo céu, a uma velocidade assustadora, ignorando todo e qualquer
obstáculo à sua frente. Quanto mais alto subia, maior se tornava o seu campo de
visão sobre o horizonte, cheio de possibilidades, e maior era sua vontade de
chegar o mais longe que pudesse. Dez séculos de pouca mobilidade amarrado a
mistérios sobre-humanos, faz com que qualquer um, ao desatar as amarras, se
afobe e saia correndo sem pensar na velocidade e no rumo que deve seguir. Tudo
parecia correr bem no início do trajeto do homem-bala. Mas, com o tempo, ele
passa a olhar com maior atenção o que vê pela frente. Vê castelos destruídos,
esburacados pelos projéteis lançados pouco tempo antes dele. Vê as marcas de
destruição de enormes bolas de pedra que se chocam ao chão depois de sua
gloriosa conquista dos céus. E, logo, lhe vêm uma lembrança à mente: “tudo que
sobe, desce”.
O iluminismo foi a catapulta do
homem, a ferramenta desenvolvida para realizar o projeto moderno de dar mais
dinâmica ao processo de civilização. Por meio dele, muitos obstáculos no
caminho da expansão da civilização foram retirados. O Deísmo conseguiu subjugar
o inquestionável Deus medieval à espada da Razão, colocando-o de lado para que deixasse
de ser um entrave moral. Desmoronou a crença cristã da imperfeição humana
erigida pela Igreja e elaborou outra crença, tão religiosa quanto qualquer
crença medieval: a crença na possibilidade da perfectibilidade humana. Realizou
a necessária distinção entre o plano material e o espiritual – enaltecendo um e
desvalorizando o outro – imprescindível aos anseios pela livre ação humana
sobre a realidade. Não mais era compromisso do homem compreender uma verdade
revelada e adaptar-se a ela da melhor forma possível, esse compromisso foi
substituído pelo compromisso de entender racionalmente o funcionamento do
mundo, de forma que pudéssemos manuseá-lo como bem entendêssemos no sentido de
aperfeiçoá-lo à nossas vontades e necessidades. O sentido da vida humana passa
a ser buscar a perfeição humana e o aperfeiçoamento do mundo. A esta ideologia,
deram o nefasto nome de progresso.
A tecnologia gera problemas que tentamos resolver com mais tecnologia. |
A ideologia do progresso gerou
frutos: a ciência, o individualismo e o capitalismo.
Aos poucos matou o Deus cristão e erigiu em
seu lugar um panteão de deuses produzidos industrialmente e vendidos em
supermercados. Esses novos deuses são mais fáceis de cultuar, não querem nada
de nós além de toda uma vida de sacrifícios – produzir para consumir para
produzir para consumir para produzir para consumir...
A sociedade apostou todas as suas
fichas na ciência e agora os cientistas são os modeladores da Revelação – “eles
sabem o que estão fazendo”, tentamos nos convencer. Acreditamos que a
tecnologia resolve tudo e resolverá ainda mais no futuro. O mito da tecnologia
como redenção da humanidade é difundido como pílulas para dormir e ignoramos na
prática que toda tecnologia tem um custo e que os problemas aos quais tentamos
resolver com tecnologia foram gerados exatamente por essa lógica de que só
precisamos de tecnologia mais avançada para superar nossas dificuldades.
As pessoas buscaram a perfeição, e
não a encontraram, e na falta do perdão, incomodamente e excessivamente cristão
para os novos tempos, encontraram o consolo em remédios que engendram doenças. A
neurose da busca pela impecabilidade nos tornou incapazes de lidar com os erros
e de entender que não somos nem podemos ser perfeitos. Tornamo-nos assim
escravos da culpa que nos chicoteia a cada erro que cometemos. Logo, só nos restam
duas opções: sermos assombrados constantemente pela lembrança de nossos erros
passados, mas continuar buscando a ética da perfeição frustradamente durante
toda uma vida e exigindo-a de todos os outros ao nosso redor; ou nos resta
despirmo-nos de valores morais e de ética, viver pela satisfação da vontade e
pela busca do prazer e conforto. Essa constante cobrança pessoal extravaza-se
ao outro, e assim, perdemos a capacidade de compreender e perdoar as limitações
desse outro. Desaprendemos a amar, a nos relacionar intimamente e a perceber o
caráter pedagógico do erro. Estamos tentando desenvolver nossa individualidade
à força, passando por cima dos obstáculos ao invés de compreendê-los e nos
adaptarmos a eles, porque temos pressa, queremos ser perfeitos AGORA!
A natureza e o futuro do planeta está em nossas mãos, e é exatamente esse o problema. |
Pois é, o homem-bala, catapultado
das pequenas cidadezinhas em ascensão no século XIV – XV, começa a perceber que
seu trajeto não é uma reta rumo ao infinito, mas sim, uma parábola rumo ao chão
sólido. Não me parece arriscado dizer que os mais sensatos dentre nós já podem
perceber que estamos atingindo o pico de ascensão em nossa aventura suicída.
Daqui, pouco mais podemos subir. E o declínio será catastrófico para o projeto
de progresso ilimitado e busca pela perfeição. Aliás, pouco disso realmente
conseguimos alcançar. Ninguém nunca foi perfeito e nunca será, temos nos
tornado, na verdade, cada vez mais incapazes de estabelecer relações sociais sadias,
seja com os outros, seja com nosso próprio ego. O mundo não está se tornando
mais perfeito, está se tornando num inferno onde se torna a cada dia mais
difícil viver em paz sem ser atingido pelas consequências de nossa civilização.
Não conseguimos nos tornar independente da natureza, por mais que pensemos que
estamos exercendo um relativo grande domínio sobre as leis naturais, estamos
apenas levando aos limites a nossa boa relação com ela. Seremos cobrados por
nossa audácia e cada dia que passa o preço se torna mais alto. Estamos sim
progredindo – estamos em movimento retilíneo e cada vez mais acelerado em
direção a uma parede, e nada indica que temos intenção de parar e dar meia
volta antes da colisão.
Realmente, as coisas não deviam
estar indo bem nos feudos medievais. Alguma coisa precisava ser feita. Mas,
como sempre fez desde a escolha insana e pouco lógica de trocar uma vida nômade
de pouco trabalho e abundância de alimentos por uma vida de trabalho árduo
cultivando a terra na transição do modo de vida caçador-coletor para o modo de
vida agrícola, o homem optou pelo mais promissor – pela maior quantidade de
conforto, prazer e bem-estar possível – e, como antes, conseguiu. Ergueu uma
civilização nunca antes vista na história do planeta e, por consequência,
construiu a possibilidade de gerar o maior colapso civilizacional já visto. Isso
porque, em todos esses dez mil anos de civilização, não conseguiu aprender que
mais conforto, prazer e bem-estar, pelo menos na forma de que estamos
habituados a entender esses conceitos, não tem nada a ver com vida melhor.
Carlos Teixeira.