Sobre este espaço

"Existem maneiras de pensar, agir e viver que possam ser mais satisfatórias, emocionantes, e principalmente dignas, do que as formas como pensamos, agimos e vivemos atualmente?"


Um de nossos tantos desejos... Se algum material que colocamos aqui, de alguma forma, estimular você a pensar ou sentir algo, pedimos de coração para que você use estas ideias. Copie, mude, concorde, discorde. A intenção deste blog é incentivar o questionamento e a intervenção das pessoas na sociedade. Pegue os textos, tire xerox, CONVERSE mais, faça por você, faça por todos nós, faça por ninguém. E se quiser, entre em contato(conosco, c/ qualquer um, com o meio, c/ a natureza...) Coletiva e humilde-mente - vive em paz, revolte-se!

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

SOBRE AS BASES MÍSTICAS DA "NEUTRALIDADE" DA TECNOLOGIA por Willful Disobedience


... A produção de robôs é naturalmente (ou melhor, anti-naturalmente) acompanhada pelo desenvolvimento de um ambiente adequado apenas para robôs.
-Enciclopédia des Nuisances

Existe uma suposição popular entre os esquerdistas e outros radicais que sentem sempre algum apego pelo conceito de progresso ou inclusive pelas construções teóricas marxistas, de que a tecnologia como tal é neutra. Esta suposição é particularmente divertida porque aqueles que a mantêm acusam os críticos da tecnologia de terem uma concepção mística e não histórica da tecnologia. O que estes apologistas da tecnologia reclamam, é que as criticas promovem o "determinismo tecnológico", fazendo da tecnologia o fator central determinante no desenvolvimento social, e dessa maneira perdendo a visão sobre o fator social. Terminam proclamando que os problemas não procedem do sistema tecnológico como tal, senão de quem os utilizam e como utilizam.

Evidentemente, também há aqueles que têm atribuído poderes determinantes inerentes à tecnologia. Um dos maiores defensores deste ponto de vista foi Marx, cujo economismo foi decididamente um economismo tecnológico. Desde sua perspectiva, a necessidade econômica criou o desenvolvimento tecnológico (tal como o antigo sistema fabril) que posteriormente criou as bases para a substituição do sistema dominante. De tal maneira, o economismo de Marx incorpora também um tipo de determinismo tecnológico.

O erro de Marx repousa precisamente em seu determinismo (uma conseqüência inevitável do fato de que sua critica a Hegel se limitou a virar a ideia de Hegel - um determinista histórico – “com o lado certo para cima” mais que em recusar suas construções básicas). Uma abordagem verdadeiramente histórica, em oposição à mística, da luta social e de todos os fatores mesclados com ela, tem que recusar qualquer forma de determinismo, e partir da idéia de história como atividade humana, no lugar de fazê-lo a partir da idéia de que a história é uma expressão de qualquer valor ou concepção metafísica global. Assim, qualquer produto da história deve ser visto como um produto de seu contexto, em termos de relações sociais concretas nas quais se desenvolve. A partir desta perspectiva, não pode existir tal coisa como tecnologia "neutra".

A tecnologia sempre se desenvolve dentro de um contexto social, com o objetivo explícito de reproduzir esse contexto. Sua forma, seu propósito e suas possibilidades estão determinadas por este contexto, e isto é precisamente o que faz com que a tecnologia não seja neutra. Se entendermos tecnologia como um sistema de técnicas em grande escala (assim como o industrialismo, cibernética, etc), então não conhecemos nenhum sistema tecnológico que não tenha sido desenvolvido dentro de um contexto de dominação, de classes dominantes e exploração. Se Marx, em sua míope visão Hegeliana, pode de alguma maneira ver comunismo num sistema industrial, é unicamente porque sua visão de comunismo era a negação da liberdade individual, a absorção do individuo em "species being" (seres espécie) que se manifestou no processo obrigatório de produção coletiva da fábrica. De fato, o sistema industrial se desenvolveu com um propósito; maximizar a quantidade de benefícios que pode ser obtido de cada minuto de trabalho, aumentando o nível de controle sobre todos e cada um dos movimentos do trabalhador durante a produção. Cada novo desenvolvimento tecnológico dentro do sistema industrial capitalista, simplesmente aumenta o nível de controle sobre os processos, até o ponto onde atualmente todos estão praticamente automatizados, e a nanotecnologia e a biotecnologia estão criando as bases para introduzir esse controle diretamente em nossos corpos, controle a um nível molecular.

Exatamente como as ideologias de qualquer época são a expressão do sistema dominante desse período de tempo, assim a tecnologia de cada época também reflete o sistema dominante. A concepção de que as tecnologias são neutras, e de que podemos nos reapropriar do sistema tecnológico e utilizá-los para nossos fins, é uma concepção mística que concede uma inocência não histórica à tecnologia. Como a ideologia, aqueles sistemas de ideias reificadas através do qual a ordem dominante reforça sua dominação, a tecnologia é um produto da ordem dominante criada para reforçar essa ordem. A destruição da ordem dominante envolve a destruição de sua tecnologia, do sistema de técnicas que ela desenvolveu para reforçar sua dominação.

Até este ponto, os sistemas tecnológicos desenvolvidos pela ordem dominante são tão intrusos e prejudiciais, que pretender que possam ser utilizados para qualquer propósito de libertação é um absurdo. Se Marx, seguindo Hegel, afirmou que a historia teria um final, um fim determinado, nós agora sabemos que este ponto de vista é demasiadamente Cristão para ser de alguma forma verdadeiramente revolucionário.

A revolução é uma aposta, e esta aposta é precisamente que pelo desconhecido, que oferece a possibilidade do fim da dominação e exploração, vale a pena arriscar, e que, correr este
risco envolve a destruição da totalidade deste civilização de dominação e exploração - incluindo seus sistemas tecnológicos - que tem sido tudo que já conhecemos. A vida está em outro lugar. Será que temos a coragem e a vontade de encontrá-la?

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Tradução: ervadaninha - iniciativa anarquista-verde

sábado, 11 de janeiro de 2014

CONTRA A CIVILIZAÇÃO (COMUNICADO 23) por T.H.U.G.


O presente comunicado foi encontrado no local de um recente encontro secreto interrompido em Dover, Delaware, que houve para facilitar a coligação entre a Chevron, Pepsi-CO, Microsoft, o Sierra Club, o Northern New Jersey Federation of Anarcho-Stalinists (Federação Anarco-Estalinista do New Jersey do Norte), Michael Albert e o Institute for Social Ecology (Instituto pela Ecologia Social). Esta perturbação parece ser evidência de que as ideias e ações insurreccionárias anarquistas verdes e anarcoprimitivstas estão a espalhar-se!

Nos é frequentemente dito que os nossos sonhos são irrealistas, as nossas exigências impossíveis, que nós estamos basicamente loucos em sequer propor um tal conceito ridículo como o da “destruição da civilização”. Então, nós esperamos que esta breve declaração possa esclarecer um pouco acerca de porque é que nós não iremos nos contentar com nada menos do que com uma realidade completamente diferente daquela que nos é imposta hoje. Nós acreditamos que as infinitas possibilidades de experiência humana estendem-se tanto para a frente como para trás. Nós queremos o colapso da discordância entre estas duas realidades. Nós lutamos por uma realidade “futura primitiva”, uma que os nossos antepassados uma vez conheceram, e uma que nós podemos vir a conhecer: uma realidade pre/pós-tecnológica, pre/pós-industrial, pre/pós-colonial, pre/pós-capitalista, pre/pós-agrícola, e até pre/pós-cultural – onde nós fomos uma vez, e podemos ser outra vez, SELVAGENS!

Nós sentimos que é necessário levantar algumas questões fundamentais acerca de onde nós estamos agora, como nós chegámos a este ponto, para onde caminhamos, e talvez mais importante, de onde viemos. Isto não deve ser visto como uma prova irrefutável, as Repostas, ou prescrições para a libertação; mas em vez disso, como coisas para se considerar enquanto lutamos contra a dominação ou tentativa de criar outro mundo.

Nós acreditamos que a anarquia seja a última experiência libertadora e a nossa condição natural. Antes, e fora, da civilização (e as suas influências corruptíveis), os humanos eram, e são, na falta de melhores termos, anarquistas. Durante a maior parte da nossa história nós vivemos em grupos de pequeno-porte que tomavam decisões face-a-face, sem a mediação de governo, representação, ou até mesmo da moralidade de uma coisa abstracta chamada cultura. Nós nos comunicávamos, percebíamos, e vivíamos numa forma não mediada, instintiva e direta. Nós sabíamos o que comer, o que nos curava, e como sobreviver. Nós fazíamos parte do mundo a nossa volta. Não existia qualquer separação artificial entre o indivíduo, o grupo, e o resto da vida.

Numa escala mais vasta da história humana, não à muito tempo (alguns dizem 10, 000 a 20, 000 anos atrás), por razões que nós podemos apenas especular (mas nunca realmente saber), um desvio começou a ocorrer em alguns grupos de humanos. Estes humanos começaram a confiar menos na terra enquanto uma “doadora de vida”, e começaram a criar uma distinção entre elas próprias e a terra. Esta separação é a fundação da civilização. Não é na realidade algo físico, apesar de a civilização ter algumas manifestações físicas muito reais; é mais uma orientação, uma mentalidade, um paradigma. É baseada no controle e domínio da terra e dos seus habitantes.

O principal mecanismo de controle da civilização é a domesticação. É o controle, o adestramento, a criação e modificação da vida para benefício humano (normalmente para aqueles que estão no poder ou aqueles que lutam por poder). O processo de domesticação começou a desviar os humanos para longe do modo de vida nômade, em direção a uma existência mais sedentária e estabelecida, que criou pontos de poder (tomando uma dinâmica muito diferente do mais temporal e orgânico solo territorial), mais tarde a ser chamado propriedade. A domesticação cria uma relação totalitária com as plantas e os animais, e eventualmente, outros humanos. Esta mentalidade vê outras formas de vida, incluindo outros humanos, como separadas do domesticador, e é a racionalização para a subjugação das mulheres, crianças, e para a escravatura. A domesticação é uma força colonizadora na vida não-domesticada, que nos trouxe a experiência patológica moderna do máximo controle de toda a vida, incluindo as suas estruturas genéticas.

Um grande passo no processo civilizacional é o movimento em direção a uma sociedade agrária. A agricultura cria um panorama domesticado, um desvio do conceito de “ a Terra providenciará” para “o que é que nós produziremos da Terra”. O domesticador começa a trabalhar contra a natureza e os seus ciclos, e a destruir aqueles que ainda vivem com ela e a compreendem. Nós podemos ver os princípios da patriarquia aqui. Nós vemos os princípios não apenas da concentração da terra, mas também dos seus frutos. Esta noção de posse da terra e dos excedentes cria dinâmicas de poder nunca antes experienciadas, incluindo hierarquias institucionalizadas e guerra organizada. Nós nos deslocamos por um insustentável e desastroso caminho.

Durante os seguintes milhares de anos esta doença progrediu, com a sua mentalidade colonizadora e imperialista eventualmente consumindo a maior parte do planeta com, é claro, a ajuda dos propagandistas religiosos, que tentam assegurar as “massas” e aos “selvagens” que isto é bom e certo. Para benefício do colonizador, as pessoas são colocadas em oposição a outras pessoas. Quando a palavra do colonizador não é suficiente, a espada nunca está longe com a sua colisão genocída. Enquanto as distinções de classe se tornam mais solidificadas, restam apenas aqueles que têm, e aqueles que não têm. Os que tiram e os que dão. Os governantes e os governados. As muralhas são estabelecidas. Isto é como nos é dito que sempre foi; mas a maioria das pessoas de alguma forma sabe que isto não está certo, e sempre houve aqueles que lutaram contra. 

A guerra às mulheres, a guerra aos pobres, a guerra aos indígenas e as pessoas com base na terra, e a guerra ao mundo selvagem estão todas interligadas. Aos olhos da civilização, todos eles são vistos como mercadorias – coisas para serem reclamadas, extraídas, e manipuladas pelo poder e controle. Todos são vistos como recursos; e quando eles não têm mais uso para a estrutura de poder, eles são descartados para os lixões da sociedade. A ideologia da patriarquia é a de controle sobre a auto-determinação e sustentabilidade, da razão sobre o instinto e a anarquia, e da ordem sobre a liberdade e o selvagem. A patriarquia é uma imposição de morte, em vez de uma celebração da vida. Estas são as motivações da patriarquia e da civilização; e durante milhares de anos eles têm moldado a experiência humana em todos os níveis, desde o institucional ao pessoal, enquanto eles devoram a vida.

O processo de civilização tornou-se mais refinado e eficiente a medida em que o tempo passou. O capitalismo tornou-se o seu modo de operação, o medidor da extensão da dominação e a medida daquilo que é ainda necessário para ser conquistado. O planeta inteiro foi mapeado e terras foram cercadas. O estado-nação eventualmente tornou-se o agrupamento social proposto e servia para estabelecer os valores e objetivos de vastos números de pessoas, é claro, para benefício daqueles no controle. A propaganda de estado, e por esta altura, a enfraquecida igreja, começaram a substituir parte (mas certamente não toda) da força bruta com a benevolência superficial e conceitos tais como cidadania e democracia. Enquanto a alvorada da modernidade se aproximava, as coisas estavam a tornar-se realmente doentias.

Ao longo do desenvolvimento da civilização, a tecnologia desempenhou sempre um papel cada vez mais abrangente. Na realidade, o progresso da civilização esteve sempre diretamente ligado ao, e determinado pelo, desenvolvimento de cada vez mais complexas, eficientes e inovadas tecnologias. É difícil dizer se é a civilização que impulsiona a tecnologia ou vice-versa. A tecnologia, tal como a civilização, pode ser vista mais como um processo ou um sistema complexo do que uma forma física. Ela envolve inerentemente divisão do trabalho, extração de recursos e exploração pelo poder (por aqueles que detêm a tecnologia). O cenário com, e resultante da tecnologia é sempre uma realidade alienada, mediada e pesadamente carregada. Não, a tecnologia não é neutral. Os valores e objetivos daqueles que produzem e controlam a tecnologia estão sempre incluídos nela. Diferente de ferramentas simples, a tecnologia está ligada a um processo maior que é infeccioso e é propelido para a frente pelo seu próprio ímpeto. Este sistema tecnológico avança sempre e precisa estar sempre inventando novas formas de suportar, alimentar, manter e vender a si próprio. Uma parte chave da estrutura tecno-capitalista-moderna é o industrialismo; o sistema mecanizado de produção construído sobre o poder centralizado e da exploração das pessoas e da natureza. O industrialismo não pode existir sem genocídio, ecocídio, e imperialismo. Para se manter, a coerção, expulsão de terras, trabalho forçado, destruição cultural, assimilação, devastação ecológica, e a troca global são aceitas e vistas como necessárias. A estandardização da vida pelo industrialismo objectifica-a e torna-a mercadoria, vendo toda a vida como um recurso em potencial. A tecnologia e o industrialismo abriram a porta para a última forma de domesticação da vida – o último estágio de civilização - a era da neo-vida. 

Então agora nós estamos na pós-moderna, neo-liberal, bio-tec, cyber-realidade, com um futuro apocalíptico e uma nova ordem mundial. Iss poderia ser muito pior? Ou foi sempre assim tão mau? Nós estamos quase completamente domesticados, exceto durante alguns breves momentos (tumultos, rastejando através da escuridão para destruir maquinaria ou as infra-estruturas da civilização, conectando-nos a outras espécies, nadando nu em um rio de uma montanha, comendo comida selvagem, fazendo amor, -...adicione os seus próprios favoritos) quando nós temos um vislumbre do que seria nos tornarmos selvagens. A sua “aldeia global” é mais como um parque de diversões global ou um zoo global, e não é uma questão de boicotá-la porque nós estamos todos nela e ela está em todos nós. E nós não podemos apenas nos soltarmos das nossas gaiolas (ainda que estejamos impotentes se não começarmos por aí), mas nós temos que arrebentar com todo o maldito lugar, devorarmos os guardas do zoo e todos aqueles que o gerem e se beneficiam dele, nos ligarmos aos nossos instintos, e nos tornarmos selvagens outra vez! Nós não podemos reformar a civilização, torná-la mais verde, ou torná-la mais justa. Ela é podre até a raiz. Nós não precisamos de mais ideologia, moralidade, fundamentalismo, ou melhor organização para nos salvarmos. Nós precisamos salvar a nós próprios. Nós precisamos viver de acordo com os nossos próprios desejos. Nós precisamos nos ligarmos com nós mesmos, aqueles com que nos preocupamos, e o resto da vida. Nós temos que quebrar, e destruir esta realidade.

Nós precisamos de Ação


Resumindo, a civilização é a guerra à vida. Nós estamos lutando pelas nossas vidas, e nós declaramos guerra à civilização!


T.H.U.G. (Tree Huggin’ Urban Guerrillas)     


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Fonte: Green Anarchy Magazine - Back to Basics
Tradução: Coletivo Erva Daninha

sábado, 4 de janeiro de 2014

CONTRA A SOCIEDADE DE MASSAS por Chris Wilson


Por Chris Wilson

Muitas pessoas desejam uma existência livre da autoridade coercitiva, onde cada um estaria em liberdade para fazer as escolhas de sua própria vida, à imagem de suas próprias necessidades, valores e desejos. Para que tal liberdade seja possível, nenhuma pessoa individual pode estender sua esfera de controle sobre a vida dos outros sem a sua escolha. Muitos que lutam contra a opressão no mundo moderno esforçam-se para conceituar “sociedade livre” tentando meramente reformar as mais poderosas e coercitivas instituições de hoje em dia, ou substituí-los por governos “diretamente democráticos”, municipalidades comunitariamente controladas, federações industriais de propriedade do trabalhador, etc. Aqueles que priorizam os valores da autonomia pessoal ou não controlada e existência selvagem têm razões para se opor e rejeitar todas as organizações de grande porte e sociedades com o argumento de que estas necessitam de imperialismo, escravidão e hierarquia, independentemente do propósito para o qual foram criadas.

Os humanos são sociáveis por natureza, mas são seletivos para com quem desejam se associar. Por companheirismo e apoio mútuo, as pessoas naturalmente desenvolvem relacionamentos com aqueles com quem compartilham uma afinidade. Porém, apenas nos últimos tempos as pessoas têm se organizado em agrupamentos de grande porte compostos por estranhos que compartilham poucas e irrelevantemente pouco em comum uns com os outros. Por mais de 99 por cento da história humana, humanos viveram em pequenos e igualitários arranjos familiares estendidos, enquanto extraiam sua subsistência diretamente da terra. Os bandos de coletores e as comunidades hortícolas nômades do passado e do presente são conhecidos por terem desfrutado de extensos tempos de lazer e raramente precisavam de mais de 2 ou 4 horas diárias em média para satisfazerem suas necessidades. Fome e guerra são extremamente raras nessas sociedades. Adicionalmente, saúde física, qualidade dentária e a média do tempo de vida de comunidades de pequeno porte são significativamente maiores que as de sociedades agrícolas e as primeiras sociedades industriais. Líderes são temporários, e não possuem poder além de sua habilidade de persuasão. Enquanto caçadores-coletores e agricultores de corte e queima realizam de fato uma alteração do ambiente local que são por vezes um desperdício, eles precisam provar a si mesmos que são adaptações ecológicas estáveis. A coleta serviu a humanidade por três milhões de anos, enquanto a horticultura vem sendo usada na bacia amazônica por aproximadamente 9.000 anos. As culturas de pequeno porte que restam hoje geralmente preferem seu modo de vida tradicional e muitos estão atualmente empreendendo uma impressionante resistência política contra corporações e governos que querem assimilá-los à força, de modo que sua terra e trabalho possam ser explorados. As pessoas raramente entram em organizações de massa sem serem coagidas, já que isso leva a uma diminuição da liberdade e da saúde.

A ascensão da civilização tornou-se possível por meio da produção em massa compulsória. Quando certas sociedades passaram a priorizar a produtividade agrícola como seu maior valor, eles começaram a submeter à força toda a vida ao alcance de suas cidades para esse fim. Comunidades de pessoas que desejavam coletar ou plantar sobre a terra para subsistência seriam impiedosamente abatidos ou escravizados e os ecossistemas que habitam seriam convertidos em terras agrícolas para alimentar as cidades. Aqueles comprometidos com a facilitação de tempo integral das colheitas e com a produção animal residiriam na zona rural nas proximidades, enquanto os funcionários públicos, comerciantes, engenheiros, militares, funcionários e prisioneiros habitavam as cidades. A tarefa de criar um excedente para alimentar uma classe especialista crescente fez com que as atribuições dos produtores de alimentos se intensificassem, criando, simultaneamente, a necessidade de mais terra, tanto para a agricultura como para a extração de materiais para construção e combustível. Os seres humanos foram forçados a servidão para o benefício de instituições de sua cultura de produção como um pré-requisito para a sobrevivência e a vida não-humana foi tanto explorada como eliminado para a realização de projetos humanos. Para ocupar a terra, uns seriam obrigados a pagar tributo continuamente na forma de um imposto ou dízimo (ou, mais recentemente, na forma de aluguel ou hipoteca), consequentemente exige-se de uns que dediquem a maior parte do seu tempo e energia a uma forma de emprego politicamente aceita. Ao serem obrigadas a satisfazerem as exigências dos proprietários ou empregadores em troca de espaço pessoal e mercadorias, torna-se impossível para as pessoas ganharem a vida através da caça de subsistência ou da horticultura. Embora as comunidades auto-suficientes de pequeno porte resistissem ou fugissem a intrusão de forças militares e comerciais, aquelas que falhassem seriam assimiladas. Posteriormente, elas rapidamente se esquecem de suas práticas culturais, fazendo com que se tornem dependentes de seus opressores para a sobrevivência.

O capitalismo é a atual manifestação dominante da civilização. A economia capitalista é controlada principalmente por empresas subsidiadas pelo Estado, essas organizações são de propriedade de acionistas que são livres para tomar decisões de negócios sem serem considerados pessoalmente responsáveis consequências. Legalmente, as empresas gozam do estatuto de indivíduos e, portanto, o lesado só pode atingir os bens da empresa em um processo judicial, e não os bens de propriedade dos acionistas individuais. Os empregados por essas corporações são legalmente obrigados a perseguir o lucro acima de todas as outras preocupações possíveis (por exemplo, a sustentabilidade ecológica, a segurança do trabalhador, saúde comunitária, etc.) e podem ser demitidos, processados, ou julgados se fizerem o contrário.Como uma forma tecnologicamente avançada da civilização, o capitalismo invade e utiliza ainda maior território, causando redução do espaço disponível para a vida florescer livremente para seus próprios fins. Assim como a civilização, o capitalismo recruta tanto a vida humana como a não-humana à servidão se as considerar útil, e descarta-as se a considerar como o contrário. Sob o capitalismo, a maioria das pessoas passam a maior parte consciente de cada dia (normalmente 8-12 horas) envolvidas em trabalho sem sentido, monótono, arregimentado, e muitas vezes fisicamente e mentalmente prejudicial para obter as necessidades básicas. Indivíduos privilegiados tendem a trabalhar de forma intensiva e extensivamente, normalmente para responder à pressão social ou para satisfazer uma dependência de bens materiais e serviços. Por causa da apatia, alienação e falta de poder que caracteriza a experiência diária comum, a nossa cultura apresenta altas taxas de depressão, doença mental, suicídio, dependência de drogas, e relacionamentos disfuncionais e abusivos, juntamente com numerosos modos de existência indireta (por exemplo, através da televisão, filmes, pornografia, jogos de vídeo-game, etc.).

A civilização, não o capitalismo em si, foi a gênese do autoritarismo sistêmico, servidão obrigatória e isolamento social. Assim, um ataque contra o capitalismo que não consegue atingir a civilização nunca pode abolir a coerção institucionalizada que alimenta a sociedade. Tentar coletivizar a indústria com o objetivo de promover a democratização é deixar de reconhecer que todas as organizações de grande porte adotam uma direção e forma que é independente das intenções dos seus membros. Se uma associação é muito grande para que uma relação face à face entre os membros seja possível, torna-se necessário delegar responsabilidades de decisão aos representantes e especialistas, a fim de alcançar os objetivos da organização. Mesmo que os delegados sejam eleitos por consenso ou por maioria de votos, os membros do grupo não podem fiscalizar todas as ações dos delegados a menos que a organização seja pequena o suficiente para que todos possam acompanhar os outros em uma base regular. Líderes ou especialistas delegados não podem ser responsabilizados por mandatos, nem podem ser atentados para o comportamento irresponsável ou coercivo, a não ser que estejam sujeitos a supervisão frequente por uma ampla seção transversal do grupo. Isso é impossível em uma economia baseada em uma divisão altamente estratificada de trabalho onde determinado indivíduo não pode concentrar-se sobre, ou até mesmo ver, as ações do resto. Além disso, os delegados eleitos irão atribuir mais tempo e recursos para preparar e apresentar um caso para os seus objetivos pessoais, e são, portanto, maiores as chances de ganhar mais poder através do engano e manipulação. Mesmo que o grupo como um todo determine todas as políticas e procedimentos (que em si é impossível quando o conhecimento especializado é necessário), e aos delegados só é atribuída a função de aplicá-las, eles ainda vão agir de forma independente quando eles não concordarem com as regras e estamos confiantes de que eles podem escapar da punição ignorando-as. A democracia é necessariamente representativa, não direta, quando praticada em grande escala - é incapaz de criar organização sem hierarquia e controle.

Como as organizações de massa devem aumentar a produção para manter a sua existência e se expandir, eles tendem a estender de forma imperialista seu âmbito de influência. Porque as cidades e indústrias dependem de insumos externos, eles pretendem aproveitar as áreas circundantes para uso agrícola e industrial, tornando-as inóspitas tanto para os ecossistemas não-humanos como para as comunidades humanas auto-suficientes. Esta área será expandida em relação a qualquer aumento da população ou de especialização de mão de obra que ocorra na cidade. Alguém poderia argumentar que a produção industrial poderia ser mantida e ainda reduzida, deixando aos ecossistemas e aos povos não-industriais algum espaço para co-existir. Em primeiro lugar, esta proposta convida a questão de por que a civilização deve determinar seus próprios limites, em vez de as vítimas de sua predação. Em segundo lugar, não há exemplos históricos de economias de produção que não se expandem, principalmente porque elas precisam se expandir depois de esgotar todos os recursos à sua disposição a qualquer momento.

A complexidade estrutural e a hierarquia da civilização devem ser recusadas, juntamente com o imperialismo político e ecológico que se propaga por todo o globo. Instituições hierárquicas, a expansão territorial, bem como a mecanização da vida são todos necessários para a administração e processo de produção em massa ocorrer. Apenas pequenas comunidades de indivíduos auto-suficientes podem coexistir com outros seres, humanos ou não, sem impor sua autoridade sobre eles.


Chris Wilson

Anti Copyright, 2001.

chrswlsn@yahoo.com

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Fonte: Green Anarchy #6
Original: panfleto Our Enemy Civilization, EUA
Tradução: Carlos Teixeira

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

HÁ QUE ACABAR COM TUDO ISTO! Por Anti-Authoritarians Anonymous


A atual realidade está formada, como nunca esteve, de imensas tristezas e de cinismo: “uma grande lágrima no coração da humanidade”, como disse Richard Rodriguez. O quotidiano vê aumentar a sua dose de horrores sem cessar acompanhada por um apocalipse rompante do meio ambiente. A alienação dos espíritos e os poluentes químicos disputam o predomínio na dialética da morte que rege a vida de uma sociedade dividida e gangrenada pela tecnologia. O câncer, desconhecido antes da civilização, transformou-se numa epidemia numa sociedade cada vez mais estéril e literalmente maligna.

Repentinamente, todos estarão usando drogas; sejam administradas sob regras ou vendidas sob contrabando, isto apenas é uma distinção formal. O Transtorno de Déficit de Atenção é um exemplo do esforço opressivo para medicar a angústia e agitação generalizada causadas por uma vida-mundo cada vez mais atrofiada e insatisfatória. A ordem dominante fará, evidentemente, todo o possível por negar a realidade social. A sua tecnopsiquiatria considera o sofrimento humano como de natureza biológica e de origem genética.

Novas patologias, resistentes à medicina industrial estendem-se à escala planetária da mesma forma que o fundamentalismo (Cristão, Judaico, Islâmico) - sintoma de um sentimento profundo de miséria e frustração. Aqui em casa a espiritualidade New Age (a “filosofia para estúpidos", segundo Adorno), assim como as inumeráveis terapias alternativas, deleitam-se em vãs ilusões. Pretender que pode-se estar completo/iluminado/curado no seio da loucura atual é, de fato, aceitar esta loucura.

O fosso entre ricos e pobres alarga-se, particularmente, nesta terra de sem-tetos e presidiários. A cólera aumenta e as negações em massa, fundamentos da sobrevivência do sistema, estão tendo, no mínimo, um sono conturbado. Este mundo, onde reina a falsidade, encontra apenas a adesão que merece: a desconfiança em direção às instituições é quase absoluta. Mas a vida social parece congelada, e o sofrimento dos jovens é sem dúvida o mais profundo. A taxa de homicídios entre adolescentes de 15 a 19 anos duplicou entre 1985 e 1991. O suicídio transformou-se em reação de procura de cada vez mais adolescentes, que evidentemente não conseguem imaginar a maturidade em um lugar como esse.

A cultura esmagadoramente difundida é uma cultura fast-food, desprovida de conteúdo ou compromisso. Como Dick Hebdige apropriadamente julgou, “a pós-modernidade é a modernidade sem as esperanças e sonhos que tornaram a modernidade suportável”. O pós-modernismo se anuncia como pluralista, tolerante e não dogmático. Na prática, é um fast-forward deliberadamente confuso, fragmentado, obcecado pela mídia, analfabeto, fatalista, excrescência acrítica, indiferente às questões de origens, agência, história ou causalidade. Ela não questiona nada de importante e é a expressão perfeita de uma configuração que é estúpida e suicida, e quer levar-nos com ela.

A nossa época pós-moderna encontra a sua expressão essencial no consumismo e na tecnologia, que dão aos mass media a sua força estupefaciente. Imagens e slogans impactantes e fáceis de digerir impedem de ver o show de horror da dominação que é mantido por este tipo de entretenimento, imagens e frases de fácil digestão. Inclusive os enganos mais flagrantes da sociedade podem servir para esta empresa de hipnose coletiva, como é o caso da violência, fonte de infinitas diversões. Seduzem-nos as representações de comportamentos ameaçantes, o que sugere que o aborrecimento é uma tortura ainda maior que o espanto.

A natureza, ou o que resta dela, serve como um lembrete amargo de quão deformada, insensível e fraudulenta é a existência contemporânea. A morte do mundo natural e a penetração da tecnologia em todas as esferas da vida, ou o que resta dela, desenvolvem-se a um ritmo cada vez mais rápido. A multidão informaticamente conectada, os marginais tecnóides, os ciber-não-importa-quê, a realidade virtual, a inteligência artificial, etc... Até chegar à Vida Artificial, última ciência pós-moderna.

Entretanto, a nossa Era da Computação "pós-industrial" tem como principal consequência a nossa transformação acelerada num "apêndice da máquina", como se dizia no século XIX. As estatísticas do FBI indicam, todavia, que as empresas, cada vez mais informatizadas, são o teatro de cerca de um milhão de delitos violentos por ano, e que o número de patrões assassinados duplicou nos 10 últimos anos.

Esse arranjo hediondo, em sua arrogância, espera que as suas vítimas se contentem em votar, reciclar os seus resíduos e fingir que tudo vai ficar bem. Para usar uma linha de Debord, “o espectador é somente suposto, não tem de saber nada e não merece nada”.

A civilização, a tecnologia e as divisões sociais que dilaceram a sociedade, são componentes de um todo indissolúvel, uma viagem para a morte que é fundamentalmente hostil às diferenças qualitativas. A nossa resposta terá de ser qualitativa, sem fazer caso dos eternos paliativos quantitativos que reforçam, de fato, aquilo que queremos abolir.


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(Panfleto de Anti-Authoritarians Anonymous, Eugene, 1995.)
Fonte: Actions Speak Louder Than Words - Derrick Jensen
Tradução: Coletivo Erva Daninha

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

7 MENTIRAS SOBRE A CIVILIZAÇÃO por Ran Prieur




1- Progresso.
A mentira sobre o "progresso" não é a de que ele é bom, ou inevitável, mas é o fato de que ele existe, de que sempre temos experienciado tal coisa como uma linha reta, uma única direção, ilimitado, uma mudança positiva. Devemos pensar que temos, porque "progresso" é a mentira central de nossa cultura e existem ilusões e fantasias sobre isto em todos os lugares:
Existe o sistema escolar, onde vamos das series baixas para as maiores - porém esta elevação não real, é apenas uma historia para contar, e a mudança é apenas para nos fazer melhor encaixados no sistema dominante, assim como negociamos a experiência por historias rígidas, intuição por intelecto, diversidade por uniformidade, independência por obediência, e espontaneidade pelo previsível. Então temos o sistema de trabalho assalariado, onde supostamente vamos de posições baixas para posições altas, mas poucos conseguem, e de qualquer maneira "alta" significa exatamente que o sistema dominante tem um controle firme de nossa atenção, de nossos valores, de nossas almas. Então temos a história da tecnologia, onde as mudanças são declaradas "melhores" quando seus efeitos são para aumentar nossa impetuosa força transformadora sobre o mundo enquanto também aumenta nossa distancia emocional, ou para nos fazer mais dependentes de especialistas, ou para rodear mais e mais os humanos com as coisas que os humanos tem criado, um processo que Jerry Mander identificou como “psychic inbreeding" (algo como "procriação psíquica", N do T). Um local profundo em nossa "procriação psíquica" é o mundo dos jogos de computadores, jogos que muitas vezes sem exceção são construídos sobre o mito do progresso, nos treinando para nos auto-medicar com dopaminas para visões de poder cada vez mais crescentes, e assim nos deixando desligados com uma vitória no lugar de nos mostrar como este tipo de historia realmente termina.
Na realidade, nada se torna "melhor", mas apenas mudam as suas relações, e uma mudança nas relações que negocia a consciência e a colaboração para a desconexão e dominação não é irreversível mas sim insustentável, não ilimitado e sim auto-limitado, não positivo e sim destrutivo.

2- Evolução
Não existe disputa nos registros fósseis, no qual a vida tem se transformado muitas vezes. A mentira está em projetar o mito "progresso" em tais transformações, declarar que tais mudanças seguem uma simples linha em uma única direção, e sempre para "melhor". Este é um argumento muito difundido, onde nossa insanidade coletiva empurra uma máscara de si mesma no mundo biológico para se justificar. Na realidade as mudanças biológicas não são como a mentira do "progresso" - as mudanças biológicas seguem diversas direções, com populações crescendo e diminuindo, com os organismos se tornando pequenos ou maiores, se movendo da água para terra, e da terra para a água. E nada se torna "melhor" a não ser o fato de que as espécies se adaptam melhor ao seu ambiente, e numa ausência de catástrofes a totalidade da vida se torna mais diversa e complexa. Mas de ambas as maneiras, os humanos civilizados têm feito o oposto! Não nos adaptando neste vasto mundo, mas alterando o mundo para ajusta-lo a nós mesmos, e também alterando a nós mesmos para nos encaixarmos nas nossas mesquinhas fantasias culturais. E não estamos aumentando, mas sim diminuindo a diversidade e complexidade do todo, levando as espécies à extinção e exterminando ou assimilando as sociedades humanas em uma monocultura global uniforme.
Então de qualquer maneira que você classifica a historia biológica na terra, a civilização não é uma extensão de tal história, mas sim, uma recusa, uma catástrofe.

3- Tudo é Natural
Felizmente a maioria da pessoas reconhecem que isto é uma distração pseudo filosófica simplória, mas de qualquer maneira quero derrubá-la, O argumento se apóia numa distorção semântica, uma redefinição do "natural" para incluir absolutamente tudo porque assim eu digo. A civilização é natural porque humanos são animais, o lixo tóxico é natural porque é derivado de coisas que surgem na terra, blá blá blá...
As pessoas não usam a palavra "natural" desta maneira. Talvez seja "natural" eu pegar um porrete e esmagar a sua cabeça, mas você preferiria que eu não fizesse isso, então você define palavras como "assassinato" para expressar e defender esta preferência. Da mesma maneira, as pessoas definem "natural" para expressar e defender suas preferências por árvores vivas do que por árvores de plástico, campos no lugar de estacionamentos, rios de águas potáveis no lugar de rios de dioxinas. Isto é o que "natural" realmente significa, e se você não quiser morrer de câncer e transformar a terra num deserto envenenado, temos a responsabilidade de separar linguisticamente o natural do não-natural e optar pelo natural muitas vezes durante um dia. Se você quer uma exata definição, "natural" significa simbiose com a natureza, e natureza significa a totalidade da vida simbiótica na Terra, e simbiótico significa formas de relações que são mutuamente benéficas e também benéficas para o todo, onde o benefício amplo toma prioridade. Definir "benefício" empurra os limites de nossa linguagem empobrecida, mas eu venho a dizer que "beneficio" significa gerar autonomia e diversidade de vida.  E se você não sabe o que significa vida, procure saber mais.

4- A Tecnologia é Neutra
De todas as mentiras acerca da civilização, esta é a mais traidora, a mais desafiadora para refutar, a mentira que mais enfraquece o entendimento das pessoas, uma vez que poderiam saber melhor. É uma tamanha mentira que é difícil de lidar com ela, é tão auto-referencial que é difícil estar fora disso, e estar fora disso não é uma questão de aprender um simples argumento, mas antes aprender um modo de pensar totalmente diferente e complexo. A mentira tem duas formas que são comumente indistinguíveis juntas. Uma diz que a tecnologia como um todo é neutra, onde a "tecnologia" deve ser sutilmente definida como tecnologia industrial moderna. A outra forma diz que cada tecnologia em particular é neutra. Minha estratégia é atacar a segunda e fazer a primeira parecer tola declarando que nenhuma tecnologia em particular é neutra, que cada técnica, tecnologia e ferramenta têm seu próprio direcionamento de motivos e relações.
Primeiro, eu quero expor a singularidade desta definição interna de "neutro". Uma coisa é "neutra" se você pode contar uma estória de que como tal coisa pode ser boa e outra história sobre como pode ser má. Quando usamos esta definição na vida real? Podemos dizer que um serial killer é neutro porque além de estuprar e matar uma mulher ele paga seus impostos e às vezes ele é gentil com as pessoas? Se você trabalha numa fábrica durante o dia para aprender como sabotá-la durante a noite, você é neutro para a fábrica porque você a ajuda e a danifica? Se meu país vende armas para dois outros países que estão em guerra, então eles se destruirão um ao outro e meu país enriquece, isto conta como neutro? É claro que não! Mas estes são os mesmos tipos de argumentos ridículos que as pessoas usam para declarar que a tecnologia é neutra; a televisão é neutra porque ela não apenas nos faz consumidores passivos de uma cultura uniforme sujeita a um controle central, ela pode transmitir informações úteis. Uma represa é neutra porque enquanto ela submerge ecossistemas e bloqueia o percurso dos peixes, ela também faz eletricidade. Mesmo as bombas atômicas são neutras se você pensar em alguma história absurda sobre como fazer o bem com ela. O próximo nível de decepção é dizer que é o "modo que usamos" uma tecnologia que é importante. Por exemplo, carros são neutros porque/conseqüentemente você pode usá-los para ir de um lugar ao outro, ou para atropelar intencionalmente alguém. Mas como Jacques Ellul colocou, a ultima não é um uso - é um crime. Chamar isto de uso nos ilude ao colocar nossa perspectiva num espaço artificial entre o uso normal de carros e um crime, no lugar de colocá-la onde pertence - exatamente no extremo pretensioso uso normal de um carro. Mesmo se ignorarmos a exploração dos "recursos", a deslocação ou assassinato de povos indígenas, e o lançamento de toxinas exigidas para a manufatura e abastecimento de carros, mesmo se ignorarmos as milhões das mortes por acidentes de carro e a emissão de afluentes tóxicos, e olharmos os carros como ferramentas de consumo, ainda podemos ver seus efeitos problemáticos: nos movendo rapidamente de lugar para lugar, o carro insere a distancia em nosso ambiente físico, e o espaço nessa distancia será largamente preenchido com ruas e estacionamentos para conter todos os carros. Asfaltos assassinos da Terra, expansão urbana, são praticamente inerentes à tecnologia do automóvel. Também, por razões complexas, velocidade para além de certa lentidão atualmente aumenta a permuta do tempo.

Uma vez que certa distância tenha sido inserida, você precisa de uma carro para fazer qualquer coisa. para exagerar um ponto que Ivan Illich fez, se você mora em Los Angeles você pode muito bem cortar suas pernas fora.
Livre-se dos carros, e não tentaremos caminhar 40 milhas por dia nas avenidas - arrancaremos o concreto e construiremos nossas comunidades de forma que todas as necessidades se supram no tempo de uma caminhada. Assim passa-se menos tempo viajando para ir ao trabalho, libera-se todo o tempo e energia que é direcionado aos carros, recupera-se a autonomia através da possibilidade de usarmos nossas próprias pernas. Isso também repercute na melhoria de nossos relacionamentos. Pois os carros nos fazem deslocar diante das coisas a uma velocidade tão alta, já que nos cercam, isolando-nos da realidade que nos cerca, das outras pessoas e da natureza, impossibilitando-nos de estabelecer relacionamentos profundos com pessoas distantes. Sem esses carros nos relacionamos diretamente e freqüentemente com o que estiver na nossa frente; conhecendo nossos vizinhos e a terra. Podería-se apresentar argumentos similares em relação aos computadores, televisão, eletricidade, inclusive a linguagem escrita. Mas a questão não é simplesmente rejeitar inteiras categorias de tecnologia, mas aprender a enxergar as alianças e motivações ideológicas que são inerentes à tecnologia, apesar de sua "utilidade", e praticar, incluir ou rejeitar com base nesse entendimento.

5. Não Podemos Voltar Atrás
Como a mentira anterior, esta é puramente uma doutrina religiosa - mas esta mentira é claramente refutada pelas ruínas das civilizações antigas ao redor do mundo da qual as pessoas "voltaram atrás", e por sorte ou por indivíduos excepcionais através da história que abandonaram o sistema e se direcionaram para perto da natureza. Em um sentido, de qualquer maneira, é verdade: as sociedades exploradoras não têm marcha ré e apenas podem escalar até o colapso. Para evitar pensar claramente sobre isto, podemos contar a nós mesmos a próxima mentira:


6. O Futuro Tudo-ou-Nada
 De acordo com esta historia existem apenas duas possibilidades: a civilização industrial continuada ou o fim total do mundo. A continuidade da civilização geralmente significa o uso contínuo de máquinas para transformar as relações em dominação e auto-consumo. Para os tecnófilos isto poderia significar a mineração em outros planetas ou se aprofundar numa realidade virtual; para os liberais pode ser a tomada de uma idealizada versão da classe media alta num país rico nos finais do século XX, estendido para o mundo todo, e se mantendo indefinidamente através do controle central mecânico. E supondo que nossa civilização caia (nem pense nisso!) teremos nada menos do que um horrível esquecimento absoluto no qual podemos apenas discutir em termos de o que "devemos" fazer para evitar isto. As pessoas expressam isto com insanos pronunciamentos vagos como: Se não reduzirmos as emissões de gases de efeito estufa em 50% em dez anos, será tarde demais". Tarde demais para o que? A realidade obvia é que as sugestões reformistas são politicamente impossíveis e insuficientes, que nossa civilização é um trem desgovernado que não irá diminuir a marcha até que saia dos trilhos, e que o futuro atual será aprofundado nas regiões que estamos esquecendo de considerar. A extinção de 95% das espécies incluindo os humanos não é um horror impensável, mas sim uma possibilidade específica que podemos pensar com precisão. Uma possibilidade moderada é um cenário Mad Max onde alguns humanos sobrevivem num planeta terra semi-morto. Moderado ainda seria um descentralização política e uma recuperação ecológica como a tão chamada idade media na Europa após a queda de Roma. Meu argumento é que podemos influenciar isto! Nossos sonhos e ações podem afetar que tipo de mundo nós iremos, mas não podem possivelmente manter o mundo em que estamos.

Chega um momento no incêndio em que você para de tentar salvar a casa inteira e passa a salvar o que se pode. O propósito da mentira tudo-ou-nada é bloquear esta mudança de mentalidade, para manter toda nossa atenção canalizada em seja salvando o mundo como conhecemos, ou o abandonando. Se compreendermos que mundos radicalmente diferentes são possíveis e que alguns estão vindo realmente a acontecer, se começarmos a imaginar e construir competidores vigorosos a civilização industrial, iremos danificar a "economia" e danificar especialmente os sentimentos das pessoas que têm investido seus egos na cultura dominante. Uma outra maneira que se protejam tais egos é com a seguinte mentira:

7- A civilização já ocorreu antes
Esta idéia peculiar é similar a anterior, mas a cegueira que ela impõem não é para outros sistemas não civilizados, mas para outras civilizações. A versão pró-civilização diz que esta é nossa única direção, colonizar o espaço e que quer que seja, e a versão anti-civilização diz que se nós podemos por abaixo a presente civilização, nada como isto irá acontecer novamente. Eu não sei de onde as pessoas vêm com essas idéias, ao menos que eles saibam algo que eu não sei sobre a vinda de uma transformação da new age da consciência humana. A dura lição da história é que cada civilização em particular cai enquanto a civilização em geral continua existindo.
Eu defino civilização geralmente como uma aliança entre a consciência de domínio e técnicas de exploração, criando uma sociedade que sistematicamente toma mais do que oferece. Sim, o petróleo irá acabar, mas as civilizações têm surgido e desaparecido por milhares de anos sem o petróleo, e não vejo razão para que não aconteça de novo. O modelo geral pode funcionar, se necessário, em nada mais do que nas forças dos músculos de escravos e de animais domesticados.  E quando você adiciona todo o metal e ferragens que estarão por ai, e os hábitos persistentes de nossa época, e qualquer conhecimento técnico que seja preservado, é obvio que parece que teremos civilização por ai - para participarmos ou para resistirmos - ao menos que sejamos extintos ou mudamos para algo completamente diferente.


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*Há uma versão mais atualizada e comentada desse texto no site do autor: http://www.ranprieur.com/essays/7lies.html

segunda-feira, 3 de junho de 2013

ESCOLARIZAÇÃO: A ORDEM OCULTA – DANIEL QUINN


Escolarização: a ordem oculta¹*


Eu suspeito que nem todos nessa audiência sabem quem eu sou e porque fui convidado para palestrar para vocês hoje. Além do mais, eu nunca escrevi um livro ou mesmo um artigo sobre homeschooling ou unschooling. Eu tenho sido chamado de muitas coisas: futurista, filósofo planetário, antropólogo de Marte. Recentemente fui apresentado a um público como crítico cultural e acho que isso provavelmente me define melhor. Como vocês irão ver, em minha fala para vocês hoje, eu tentarei colocar o homeschooling e o unschooling em um contexto mais amplo de nossa história cultural, assim como de nossa espécie.

Para aqueles de vocês que não estão familiarizados com o meu trabalho, eu devo começar explicando o que eu quero dizer com “nossa cultura”. Ao invés de sobrecarregá-los com uma definição, eu vou lhes dar um teste que podem usar em qualquer lugar no mundo. Se você está na parte do mundo onde a comida está trancada a sete chaves, e as pessoas que vivem ai precisam trabalhar para obtê-la, então você está entre as pessoas de nossa cultura. Se acontecer de você estar em uma selva no interior do Brasil ou na Nova Guiné, no entanto, você vai achar que a comida não está trancada a sete chaves. É simples por lá para os coletores e qualquer um que queira um pouco pode simplesmente pegar. As pessoas que vivem nessas áreas, frequentemente chamadas de aborígenes, pessoas da idade da pedra ou povos tribais claramente pertencem a uma cultura radicalmente diferente da nossa.

Comecei a focar minha atenção nas peculiaridades de nossa própria cultura no início dos anos 1960, quando eu fui trabalhar para o que era então uma editora de materiais educativos de vanguarda, Science Research Associates. Eu estava nos meus vinte e poucos anos e tão completamente aculturado como qualquer senador, motorista de ônibus, estrela de cinema ou médico. Minhas aceitações fundamentais sobre o universo e o lugar da humanidade nele eram sólidas como rocha e completamente convencionais.

Mas este foi um tempo estressante para estar vivo, de certa forma ainda mais estressante que o presente. Muitas pessoas hoje em dia entendem que a vida humana pode estar em perigo, mas este perigo existe em algum futuro vagamente definido, vinte ou cinquenta ou cem anos à frente. Mas naqueles dias mais frios da Guerra Fria todos viviam com a percepção de que um holocausto nuclear poderia acontecer, literalmente, a qualquer momento, sem aviso prévio. Isso estava realmente a um toque de botão de distância.

A vida humana não seria totalmente apagada em um holocausto deste tipo. De certa forma seria ainda pior do que isso. Em questão de horas, nos seriamos jogados de volta não apenas à Idade da Pedra, mas a um nível de desamparo quase completo. Na Idade da Pedra, apesar de tudo, as pessoas vivam perfeitamente bem sem supermercados, shopping centers, lojas de eletrônicos e todos os sistemas elaborados para manter esses lugares abastecidos com as coisas que precisamos. Dentro de poucas horas nossas cidades iriam se desintegrar em caos e anarquia, e as necessidades da vida desapareceriam das prateleiras das lojas para nunca mais serem abastecidas. Em poucos dias a fome seria generalizada.

Habilidades que eram tidas como garantidas entre os povos da Idade da Pedra seriam desconhecidas para os sobreviventes – a capacidade de diferenciar entre alimentos comestíveis e não comestíveis crescendo em seu próprio ambiente, a capacidade de perseguir, matar, se vestir, de preservar animais caçados e, o mais importante, a capacidade de fazer ferramentas com os materiais disponíveis. Quantos de vocês sabem como curar uma doença? Como fazer uma corda a partir do zero? Como fazer uma ferramenta de pedra? Menos ainda como distinguir metal de minério bruto. Habilidades banais do paleolítico, desenvolvidas ao longo de milhares de anos, se tornariam artes perdidas.

Tudo isso era livremente conhecido pelos povos que não duvidaram em nenhum momento que estávamos vivendo da forma que os humanos foram feitos para viver desde o início dos tempos, que não duvidaram em nenhum momento que as coisas que as crianças estavam aprendendo na escola eram exatamente o que eles deviam estar aprendendo.

Eu fui contratado pela SRA para trabalhar em um novo grande programa de matemática que estava sendo desenvolvido há vários anos em Cleveland. No meu primeiro ano, publicaríamos os programas de jardim de infância e da primeira-série. No segundo ano, publicaríamos o programa da segunda-série, no terceiro ano, o programa da terceira-série, e assim por diante. Trabalhando no jardim de infância e na primeira-série, eu percebi que uma coisa realmente notável. Nestas classes, as crianças gastavam a maior parte de seu tempo aprendendo coisas que possivelmente ninguém crescendo em nossa cultura poderia evitar aprender. Por exemplo, eles aprendem o nome das cores primárias. Nossa, imagine só faltar à aula no dia em que eles estão aprendendo o azul. Você passaria o resto da vida se perguntando qual é a cor do céu. Eles aprendem a ver a hora, a contar e a somar e subtrair, como se alguém possivelmente pudesse falhar em aprender essas coisas em nossa cultura. E, é claro, eles começam a aprender a ler. Vou me arriscar e sugerir um experimento. Duas classes com trinta crianças, ensinados de forma idêntica e com materiais de texto idênticos durante sua experiência escolar, mas uma classe não está recebendo nenhuma instrução de leitura e a outra está recebendo as instruções comuns. Chame isso de Conjectura de Quinn: ambas as classes terão as mesmas habilidades de leitura no fim de doze anos. Eu me sinto seguro em fazer essa conjectura porque ultimamente as crianças aprendem a ler da mesma forma que elas aprendem a falar, vivendo em contato com pessoas que leem e querendo ser capazes de fazer o que essas pessoas fazem.

Isto me ocorreu neste momento para fazer esta pergunta: Ao invés de passar dois ou três anos ensinando às crianças coisas que inevitavelmente aprenderiam de qualquer forma, porque não ensinar a elas algumas coisas que elas não iriam inevitavelmente aprender e que elas realmente gostem de aprender com essa idade? Como se guiar pelas estrelas, por exemplo. Como fazer um esconderijo. Como distinguir alimentos comestíveis de não comestíveis. Como construir um abrigo a partir do zero. Como fazer ferramentas a partir do zero. Como fazer uma canoa. Como rastrear animais – todas as esquecidas, mas ainda valiosas habilidades pelas quais nossa civilização foi efetivamente construída.

É claro, eu não preciso vocalizar esta ideia para ninguém para saber como isto seria recebido. Sendo totalmente aculturados, eu mesmo poderia explicar porque isto seria totalmente inútil. O modo como vivemos é a forma como os humanos foram feitos para viver desde o início dos tempos, e nossos filhos vêm sendo preparados para entrar nessa vida. Aqueles que vieram antes de nós eram selvagens, um pouco mais do que bestas. O mundo fez bem em se livrar deles, e nós estamos fazendo bem em se livrar de qualquer vestígio deles, incluindo suas ridiculamente lúdicas habilidades primitivas.

Nossas crianças estão sendo preparadas na escola para entrar corajosamente na única vida totalmente humana que já existiu neste planeta. As habilidades que eles estão adquirindo nas escolas irão trazer a eles não apenas sucesso, mas profunda satisfação pessoal em todos os aspectos. Do que isso importa se eles nunca farão mais do que trabalhar em algum entorpecente emprego industrial? Eles conseguem analisar uma frase! Eles conseguem explicar para você a diferença entre um soneto Petrarquiano e um soneto Shakespeareano! Eles conseguem extrair uma raiz quadrada! Eles conseguem mostrar a você porque o quadrado dos dois lados de um triangulo retângulo são iguais ao quadrado da hipotenusa! Eles conseguem analisar um poema! Eles conseguem explicar a você como uma lei passa no congresso! Eles podem muito possivelmente traçar para você as causas econômicas da Guerra Civil. Eles já leram Melville e Shakespeare, então porque eles não deveriam agora ler Dostoievsky e Racine, Joyce e Beckett, Faulkner e O’Neaill? Mas acima de tudo, é claro, a educação da cidadania, preparando as crianças para serem participantes em pleno funcionamento nesta nossa grande civilização. No dia seguinte à cerimônia de formatura, eles estarão prontos para caminhar confiantemente rumo a qualquer meta que estabeleçam para si mesmos.

É claro, tanto naquela época como agora, todos sabiam que a educação para a cidadania não estava fazendo nada disso. Então eles perceberam – como agora – que havia algo estranhamente errado com as escolas. Elas estavam falhando – e falhando miseravelmente – no cumprimento dessas sedutoras promessas. Ah sim, professores não estavam sendo bem remunerados, então o que você poderia esperar? Nós aumentamos os salários dos professores – novamente e novamente e novamente – e ainda assim as escolas falharam. Bem, o que você esperava? As escolas eram fisicamente decrépitas, mal iluminadas e sem inspiração. Nós construímos novas – dezenas de milhares, centenas de milhares delas – e ainda assim as escolas falharam. Ora, o que você esperava? Os currículos são antiquados e irrelevantes. Nós modernizamos o currículo, fizemos das tripas coração para torná-lo relevante – e ainda assim as escolas fracassaram. A cada semana – naquela época como agora – você pode ler sobre alguma nova ideia brilhante que irá certamente “concertar” seja lá o que houver de errado com as nossas escolas: a sala de aula aberta, equipe de professores, de volta ao básico, mais dever de casa, menos dever de casa – eu não poderia citar todas elas. Centenas dessas ideias brilhantes foram implementadas – milhares delas foram implementadas – e ainda assim, as escolas falharam.

Dentro de nossa matriz cultural, cada meio nos diz que a escola existe para preparar a criança para uma vida bem sucedida e satisfatória em nossa civilização (e, portanto, está fadada ao fracasso). Isto é indiscutível, indubitável e inquestionável. Em Ishmael, eu disse que a voz da mãe cultura sussurra para nós de cada jornal e cada artigo de revista, cada filme, cada sermão, cada livro, cada parente, cada professor, cada administrador escolar, e o que ela tem a dizer sobre as escolas é que elas existem para preparar as crianças para uma vida bem sucedida e satisfatória em nossa civilização (e, portanto, fadada ao fracasso). Uma vez que caminhamos para fora de nossa matriz cultural, essa voz não alcança mais nossos ouvidos e estaremos livres para fazer alguns novos questionamentos. Você supõe que escolas não estão realmente falhando? Você supõe que elas estão fazendo exatamente o que nós realmente queremos que elas façam – mas que não desejamos reconhecer?

Admitindo-se que as escolas fazem um pobre trabalho de preparação das crianças para uma vida bem sucedida e satisfatória em nossa civilização, que coisas eles fazem excelentemente bem? Bem, para começar, eles fazem um ótimo trabalho mantendo pessoas jovens fora do mercado de trabalho. Em vez de se tornarem assalariados aos doze ou quatorze anos, eles mantêm apenas como consumidores – e consomem bilhões de dólares em mercadorias usando o dinheiro que seus pais ganham. Tente imaginar o que aconteceria à nossa economia se da noite para o dia as escolas fechassem suas portas. Em vez de ter cinquenta milhões de consumidores ativos por ai, nos teríamos de repente cinquenta milhões de jovens desempregados. Seria nada menos do que uma catástrofe econômica.

Claro que a situação era muito diferente duzentos anos atrás, quando ainda éramos uma sociedade predominantemente agrária. Os jovens eram ensinados e necessários para tornarem-se trabalhadores aos dez, onze, doze anos. Para as massas, um quarto, quinto ou sexto ano educacional era considerado perfeitamente suficiente. Mas com as mudanças das características da nossa sociedade, menos jovens passaram a ser requisitados para trabalhar nas fazendas e a promulgação de leis de trabalho infantil logo tornaram impossível colocar crianças de dez, onze, doze anos para trabalhar nas fábricas. Isso foi necessário para mantê-los fora das ruas – e que lugar seria melhor para isso do que as escolas? Naturalmente, novo material teve que ser inserido no currículo para preencher o tempo. Não importa com o que. Faça com que memorizem as capitais de cada estado. Faça com que memorizem os principais produtos de cada estado. Faça com que aprendam os passos que uma lei percorre para ser aprovada pelo Congresso. Ninguém se pergunta ou se preocupa se essas são coisas que as crianças querem saber ou precisam saber – ou se algum dia vão precisar saber. Ninguém se pergunta ou jamais se preocupa em descobrir se o material que está sendo adicionado ao currículo está sendo absorvido. Os educadores não querem saber, e, realmente, que diferença isso faria? Eu não me importo com isso, uma vez aprendido, eles serão imediatamente esquecidos. Isso mata algum tempo. A lei decretou que uma oitava-série de educação era essencial para todo cidadão, e então os desenvolvedores de currículos forneceram o material necessário para uma oitava-série educacional.

Durante a Grande Depressão tornou-se urgentemente importante manter as pessoas jovens fora do mercado de trabalho o máximo possível, se tornou entendido que uma décima segunda-série educacional era essencial para todo cidadão. Como antes, eu não me importo muito com o que está sendo adicionado para matar o tempo, contanto que seja marginalmente plausível. Vamos fazer com que aprendam a analisar um poema, mesmo que eles nunca venham a ler outro em toda sua vida adulta. Vamos fazê-los estudar história mundial, mesmo que isso tudo entre por uma orelha e saia pela outra. Vamos fazer com que aprendam geometria euclideana, mesmo que em dois anos eles não possam mais provar um único teorema ainda que suas vidas dependessem disso. Todas essas coisas e muitas, muitas mais são justificadas com base em que elas irão contribuir para o sucesso e rica satisfação que suas crianças vão experimentar quando adultas. Exceto, é claro, que não irão. Mas ninguém quer saber disso. Ninguém nem sonharia em testar os jovens cinco anos depois da graduação para saber o quanto disso se realizou. Ninguém nem sonharia em perguntar a eles quão útil isso tem sido para eles em termos realistas ou quanto isso tem contribuído para seu sucesso e realização enquanto humanos. Qual seria o objetivo de pedir a eles que avaliassem sua educação? O que eles sabem sobre isso afinal? Eles são apenas graduados no ensino médio, não educadores profissionais.

No fim da Segunda Guerra Mundial, ninguém sabia como seria o futuro da economia. Com o desaparecimento da indústria bélica, o país iria retroceder de volta a depressão pré-guerra? O mundo começou a espalhar que a educação do cidadão deveria realmente incluir quatro anos de universidade. Todos deveriam entrar na universidade. Enquanto a economia continuava crescendo, porém, essa ordem começou a ser suavizada. Quatro anos de universidade podem realmente ser bons para você, mas isso não é parte da educação do cidadão, que ultimamente continua sendo de doze séries de educação.

Foi nos bons tempos depois da guerra, quando havia constantemente mais empregos que trabalhadores para preenchê-los, que nossas escolas começaram a ser percebidas como falidas. Com a demanda de trabalhadores preparados, era evidente que as crianças estavam saindo da escola sem saber muito mais do que graduados da sexta-série de um século atrás. Eles tinham “passado por” todo o material que tinha sido adicionado para matar o tempo – analisado poesias, diagramado sentenças, provado teoremas, encontrado o valor do x, passado por milhares de páginas de história e literatura, escrito muitos textos – mas, para a maior parte, não absorveram quase nada  e quão útil isso seria para eles se o tivessem? De um ponto de vista empresarial, esses graduados foram mal preparados.

Mas, é claro, até ai o currículo tinha alcançado o status de escritura, e já era tarde demais para reconhecer que o programa não havia sido projetado para ser útil. A resposta dos educadores à comunidade empresarial foi: “Nós só temos que dar às crianças mais do mesmo – mais poemas para analisar, mais sentenças para diagramar, mais teoremas para provar, mais equações para resolver, mais páginas de história e literatura para ler, mais temas para escrever, e assim por diante”. Ninguém percebia que o programa tinha sido criado para manter os jovens fora do mercado de trabalho – e que tinham feito um excelente trabalho com isso.

Mas manter os jovens fora do mercado de trabalho é apenas metade do que as escolas fazem soberbamente bem. Lá pelos treze ou quatorze anos de idade, a criança em sociedades aborígenes – sociedades tribais – já completou o que nós, em nosso ponto de vista, chamaríamos de sua “educação”. Eles estão “formados” e tornam-se adultos. Nestas sociedades, isto significa que seu valor de sobrevivência é de 100%. Todos os mais velhos podem desaparecer do dia para a noite e isso não instalaria o caos, a anarquia e a fome entre esses novos adultos. Eles seriam capazes de seguir sem dificuldade. Nenhuma das habilidades e tecnologias praticadas por seus pais seria perdida. Se eles quisessem poderiam viver de forma totalmente diferente da estrutura tribal em que foram criados.

Mas a última coisa que nós queremos que nossas crianças sejam hábeis para fazer é viver independentemente de nossa sociedade. Nós não queremos que nossos graduados tenham um valor de sobrevivência de 100%, porque isso seria torná-los livres para optar por sair de nossa economia cuidadosamente construída e fazer o que eles quisessem. Nós não queremos que eles façam o que eles quiserem, nós queremos que eles tenham exatamente duas escolhas (assumindo que eles não são independentemente capazes). Conseguir um emprego ou entrar para uma faculdade. Ambas as escolhas são boas para nós, porque nós precisamos de um suprimento constante de trabalhadores de nível básico e também precisamos de doutores, advogados, físicos, matemáticos, psicólogos, geologistas, biologistas, professores escolares, e etc. A educação do cidadão cumpre isso quase sem falha. Noventa e nove por cento de nossos graduados do ensino médio faz uma dessas duas escolhas.

Deve-se notar que nossos graduados do ensino médio são, com certeza, trabalhadores de nível básico. Nós precisamos deles para ter quem segure o degrau mais baixo da escada. Que sentido teria dar a eles habilidades que tornariam possível segurar o segundo ou terceiro degrau? Estes são os degraus que seus irmãos e irmãs mais velhos estão tentando alcançar. E se estes recém-graduados estivessem tentando alcançar o segundo ou terceiro degrau, quem faria o trabalho lá de baixo? As pessoas de negócios que fazem a contratação constantemente reclamam que os graduados do ensino médio não sabem absolutamente nada, não têm praticamente nenhuma habilidade útil. Mas, na verdade, como isso poderia ser diferente?

Então você pensa que nossas escolas não estão falhando, estão apenas sendo bem sucedidas de uma forma que nós preferimos não enxergar. Formar graduados sem habilidades, sem valor de sobrevivência e sem escolha senão trabalhar ou morrer de fome, não são falhas do sistema, são características do sistema. Estas são coisas que o sistema precisa fazer para manter as coisas como elas são.

A necessidade de escolarização é reforçada por dois elementos bem enraizados da mitologia cultural. A primeira e mais perniciosa delas é que as crianças não irão aprender ao menos que sejam obrigadas – em escolas. Isto é parte da mitologia da própria infância em que as crianças odeiam aprender e irão resistir a isso a qualquer custo. É claro, qualquer um que tenha tido filhos sabe que isso é uma mentira absurda. Na infância, as crianças são os aprendizes mais fantásticos do mundo. Se elas crescem em uma família na qual quatro línguas são faladas, elas estarão falando quatro línguas com cerca de três ou quatro anos de idade – sem um dia de escolarização sequer, apenas estando ao redor dos membros de sua família, porque querem desesperadamente ser capazes de fazer as coisas que eles fazem. Qualquer um que já tenha tido uma criança sabe que eles são curiosos incansáveis. Logo que são capazes de fazer perguntas, passam a perguntar o tempo todo, constantemente levando seus pais à loucura. Sua curiosidade se estende a qualquer coisa que possam alcançar, por isso todos os pais logo aprendem a colocar qualquer coisa frágil, qualquer coisa perigosa, qualquer coisa intocável no alto – e se possível trancado com chave. Nós todos sabemos a verdade da piada sobre aquelas tampas de garrafa à prova de crianças: apenas as crianças conseguem abri-las.

Pessoas que imaginam que crianças são resistentes à aprendizagem tem um entendimento inexistente de como se desenvolve a cultura humana. Cultura é nada mais nada menos do que a totalidade do comportamento e informação aprendidos e passados de uma geração para a outra. O desejo de comer não é transmitido pela cultura, mas o conhecimento sobre como encontrar, coletar e processar alimentos comestíveis é transmitido pela cultura. Antes da invenção da escrita, qualquer coisa que não fosse passada de uma geração para outra seria simplesmente perdida, não importando o que fosse – uma técnica, uma música, um detalhe da história. Entre os povos aborígenes – os que não foram destruídos – a transmissão entre gerações é notavelmente completa, mas, é claro, não 100% completa. Sempre haverá detalhes triviais de história pessoal que a geração mais velha irá levar para a cova. Mas o material vital nunca será perdido.
Isto acontece porque o desejo de aprender está conectado à criança humana da mesma forma que o desejo de reprodução está conectado ao adulto humano. Isto é genético. Se houvesse uma linhagem de humanos cujas crianças não fossem movidas para a aprendizagem, ela já teria se extinguido a muito tempo, porque eles não poderiam ser portadores de cultura.

Crianças não devem ser motivadas a aprender tudo o que podem do mundo onde habitam, já são absolutamente movidas para aprender isso. No início da puberdade, as crianças nas sociedades aborígenes já aprenderam infalivelmente tudo o que precisam para funcionarem como adultos.

Pense dessa forma. Em termos gerais, o relógio biológico humano está definido para dois alarmes. Enquanto o primeiro alarme dispara, no início da puberdade, e o relógio soa: companheira, companheira, companheira, companheira, companheira; O alarme que soa aprender, aprender, aprender nunca desaparece inteiramente, mas isso se torna relativamente tênue no início da puberdade. Neste ponto, a criança para de querer seguir em volta de seus pais na dança do aprendizado.  Em vez disso, eles passam a querer seguir um ao outro na dança do acasalamento.

Nós, é claro, em nossa grande sabedoria, decretamos que o relógio biológico regulado pelos nossos genes deve ser ignorado.

O que cativa tanto às pessoas na ideia de escolarização é o fato de que a criança não-escolarizada aprende o que ela quer aprender quando ela quiser aprender. Isto é intolerável para elas, porque estão convencidas de que as crianças não querem aprender nada – e apontam para a escola para provar isso. O que eles não conseguem reconhecer é que a curva de aprendizagem das crianças da pré-escola cresce como uma montanha – mas rapidamente os níveis caem quando eles entram na escola. Lá pela terceira ou quarta série a curva se torna uma linha completamente reta para a maioria das crianças. Aprender, da forma como é, se tornou uma entediante e dolorosa experiência que elas adoram evitar quando podem. Mas há outro motivo pelo qual as pessoas abominam a ideia de crianças aprendendo o que elas querem aprender quando elas quiserem aprender. Elas querem que todos aprendam as mesmas coisas! Alguns deles nunca irão aprender a analisar um poema! Alguns deles nunca irão aprender a analisar uma sentença ou escrever um texto! Alguns deles nunca irão ler Julio Cesar! Alguns deles nunca irão aprender geometria! Alguns nunca irão dissecar um sapo! Alguns nunca aprenderão como uma lei passa no Congresso! Bem, é claro, isso é muito horrível de se imaginar. Não importa se 90% desses estudantes nunca irão ler outro poema ou outra peça de Shakespeare em suas vidas. Não importa que 90% delas nunca terão outra ocasião onde terão que analisar uma sentença ou escrever outro texto em suas vidas. Não importa se 90% não absorve o conhecimento funcional da geometria ou da álgebra que estudaram. Não importa se 90% nunca farão qualquer uso de qualquer conhecimento que supõem terem ganhado ao dissecar um sapo. Não importa se 90% dos graduados não têm nem uma vaga ideia de como uma lei passa no Congresso. Tudo o que importa é se eles passaram por isso! As pessoas que estão horrorizadas com a ideia de crianças aprendendo o que elas querem quando elas quiserem aprender, não aceitaram o fato psicológico mais elementar de que pessoas (todas as pessoas de todas as idades) lembram-se das coisas que são importantes para elas – as coisas que elas precisam aprender – e esquecem o resto. Eu sou uma testemunha viva deste fato. Eu estudei em uma das melhores escolas preparatórias do país e me graduei em quarto em minha classe, e duvido muito se eu conseguiria passar hoje em mais de dois ou três das dúzias de cursos que fiz. Eu estudei grego clássico por dois anos inteiros, e agora seria incapaz de ler alto uma única frase.

O argumento final das pessoas que avançam em apoio à ideia de que as crianças precisam de toda a escolarização que damos a elas é de que há muito mais material para ser aprendido hoje do que havia nos tempos pré-históricos ou mesmo um século atrás. Bem, é claro que há muito mais material que pode ser aprendido, mas nós sabemos perfeitamente bem que isso não está sendo ensinado em todas as séries. Hoje existe toda uma vastidão de novos campos de conhecimento – coisas que ninguém nunca tinha escutado a um século atrás: astrobiologia, bioquímica, paleobiologia, aeronáutica, física de partículas, etnologia, citopatologia, neurofisiologia – eu poderia citá-los por horas. Mas estas são coisas que nos temos inserido nos currículos porque todos precisam aprendê-las? Certamente não. Esta ideia é absurda. A ideia de que a criança precisa ser escolarizada por um longo tempo porque há muito para ser aprendido é absurda. Se a educação para a cidadania fosse estendida para incluir tudo que pudesse ser aprendido, isso não seria possível em doze séries, isso só seria possível em doze mil séries, e ninguém seria capaz de se formar em uma única vida.

É claro que eu sei que não há ninguém nesta audiência que precise ser convencido sobre as virtudes do home schooling ou do unschooling. Eu espero, de qualquer forma, que eu tenha sido capaz de adicionar alguma fundamentação filosófica, histórica, antropológica e biológica para as suas convicções de que a escola não é nada do que julga ser.

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¹ Palestra de Daniel Quinn em uma conferência sobre homeschooling/unschooling em 2000. 
* Daniel Quinn é um crítico cultural autor do romance Ismael - Um Romance Sobre a Condição Humana. (http://www.ishmael.org/)


Carlos Teixeira